“Clonaram Tyrone!” – Crítica

Uma mistura inteligente do estilo “blaxploitation” com uma atmosfera retro-futurista resulta num sci-fi sensacional protagonizado por John Boyega, Teyonah Parris e Jamie Foxx.

Fonte: Netflix

O termo “blaxploitation” foi um movimento cinematográfico ocorrido nos EUA na década de 70 que foi protagonizado, escrito e dirigido por pessoas pretas que tinham como público-alvo principalmente as comunidades negras norte-americanas. Este movimento capturava o estilo “black power”, a cultura e a influência negra nas periferias, bem como em outros seguimentos da sociedade se tornando uma importante revolução cultural e racial que perdura até os dias atuais.

É seguindo essa linha que a nova produção da Netflix dirigida e co-roteirizada por Juel Taylor (Creed 2), “Clonaram Tyrone!” (They Cloned Tyrone, 2023) traz um longa retro-futurista com estilo que remete “blaxploitation” de uma forma atualizada contando a história do traficante Fontaine (John Boyega), o cafetão Slick Charles (Jamie Foxx) e a prostituta Yo-Yo (Teyonah Parris) que acabam se unindo de forma inusitada se deparando com uma bizarra conspiração no bairro em que vivem.

A partir desta premissa, o longa escrito por Tony Rettenmaier (“Space Jam: Um Novo Legado”) e co-escrito pelo próprio Taylor que inicialmente parece um tradicional filme de gangster daqueles bem pesados nos seus primeiros vinte minutos, inclusive soa um pouco confuso para expectador até revelar a verdadeira intenção da trama que faz o filme crescer em muitos níveis com uma crítica social bastante pertinente.

Fonte: Netflix

O texto de “Clonaram Tyrone!” é um primor, principalmente por conseguir equilibrar linguagem das periferias com inteligentes diálogos que remetem a cultura pop norte americana com várias referências ao próprio cinema e citações espertas de outros filmes enquanto vai abrindo sua narrativa e enriquecendo sua história com uma inesperada mudança de atmosfera entrando no campo da ficção científica.

E é neste momento que o filme se torna algo diferenciado, ao conseguir evoluir sua trama dramática em um inteligente sci-fi que remete a filmes como “Mulheres Perfeitas” e o recente “Não Se Preocupe, Querida”, só que feito de uma forma melhor executada, chegando perto da genialidade de Jordan Peele no premiado “Corra!”, conseguindo criar um enredo conspiratório que vai ficando sombrio a medida que as reviravoltas vão acontecendo.

Tudo isso funciona, por conta da feliz escolha do elenco principal, John Boyega (A Mulher Rei) no papel de Fontaine é o traficante de forte personalidade que se vê no meio de uma conspiração governamental na sua vizinhança que o afeta diretamente levando a questionar sua própria existência. Boyega consegue oferecer alma e coração para um protagonista estiloso com presença que o ator domina de forma exemplar mostrando uma versatilidade dramática muito bem-vinda.

Fonte: Netflix

A segunda atuação de destaque é Teyonah Parris (A Lenda de Candyman) no papel de Yo-Yo, uma mulher com muita presença, bastante curiosa que usa sua personalidade investigativa para ir atrás da verdade que cerca seu amigo Fontaine, a atriz entrega uma atuação muito boa e tem os melhores diálogos do filme. Por último ainda temos o sempre ótimo Jamie Foxx (Dupla Jornada) no papel do cafetão Slick Charles em uma performance que ator domina bem e gera bons momentos de humor que ajuda a quebrar um pouco o tom mais sério do longa.

O mais interessante em “Clonaram Tyrone!” é como o filme consegue estabelecer uma atmosfera estranha em meio ao gueto norte americano, onde a trama parece ser apenas mais um drama sobre guerra de gangsters, mas se revela um filme reto futurista que aborda ciência e clonagem numa narrativa que vai ficando obscura a cada nova cena, conseguindo trazer ótimas críticas sociais em termos raciais que vão desde gentrificação do gueto até embranquecimento racial.

É neste ponto que o filme se torna uma narrativa extremamente inteligente que mostra a retomada de consciência e controle do livre arbítrio fazendo diversas referências as revoluções negras durante as décadas, onde pessoas pretas se unem para defender seus direitos na luta contra o preconceito e o racismo. O longa apresenta uma cadência que pode tornar a narrativa pouco dinâmica, mas ainda assim, é proposital para trazer uma densidade e expectativa ao seu público, apresentando uma segunda metade simplesmente espetacular com revelações no mínimo satisfatórias, num enredo que se mostra complexo e que não deve ser encarado de forma trivial.

Fonte: Netflix

Em termos técnicos, o filme é bastante consistente, com uma trilha sonora excelente com clássicos da cultura negra e acordes na composição que ajudam dar um ar meio noir que remete filmes sci-fi como Blade Runner. A fotografia é escura, ainda que em alguns momentos surpreenda com paletas de cores que ajudam a diferenciar o antigo do novo, para o futurista. A ambientação é boa acentuando um design de produção bem feito, assim como ótimos figurinos que dão um estilo único a produção.

Talvez o ponto mais positivo aqui é como o longa sai do senso comum e entrega um filme progressivo que diverte não só pela forma como revela seus mistérios, mas como torna a narrativa melhor chegando no ótimo terceiro ato, onde o filme consolida a incrível presença de seus protagonistas, trazendo uma negritude com senso de justiça numa retomada do senso crítico numa revolução que entretém e ainda é inteligente na forma como trabalha os diálogos numa riqueza de detalhes que são ao mesmo tempo um tributo ao cinema, bem como ao cinema negro e também aos melhores clássicos sci-fi.

No geral, “Clonaram Tyrone!” é o cinema preto em sua plenitude, desenvolvido de uma forma bastante esperta e criativa, que se utiliza de uma cultura que remete ao blaxploitation misturado com o gênero ficção cientifica pelo ponto de vista do gueto num anacronismo que torna a narrativa algo inteligente e bem pensado. Em um momento em que os cinemas estão lotados com o público assistindo “Barbie” e “Oppenheimer”, dois grandes filmes da temporada, este longa serve como uma alternativa para o público que vai ficar em casa, não apenas o público negro, mas o público que gosta de uma boa história e uma intrigante trama sci-fi, que não subestima seu expectador, e entrega uma narrativa com estilo, personalidade e três atuações memoráveis com dois atores (Boyega e Parris) que representam o melhor da nova geração, com um ator veterano consagrado (Foxx), privilegiados por uma direção consistente que torna este filme um dos melhores da Netflix e um dos melhores desta segunda metade do ano.

3 comentários sobre ““Clonaram Tyrone!” – Crítica

Deixe um comentário