“Medida Provisória” – Crítica

Provocador, irônico, tenso e poderoso, mas infelizmente, esta produção nacional não atinge seu ápice e acaba perdendo a oportunidade de se tornar uma obra prima do cinema negro brasileiro.

Fonte: Lereby Produções, O Lata Filmes e Globo Filmes

As diversas pautas do movimento negro tem ganhado espaço em produções nacionais e não é de hoje, M8 – Quando a Morte Socorre a Vida, Um Dia Com Jerusa e o recente Cabeça de Negô são fortes exemplos que há uma necessidade narrativa no cinema brasileiro de trazer a luta e resistência preta para ser analisada, apreciada e abrir um grande debate na sociedade na tela grande, não só em relação ao racismo e preconceito estrutural, mas também evidenciar o papel do negro e seu lugar num Brasil que ainda insiste em apagar nossa existência.

Pessoalmente acredito que estamos no caminho certo desta luta e me deixa feliz que cineastas brasileiros estão usando sua vontade de mostrar algo relevante e chamar a atenção do povo brasileiro para questões levantadas pelos movimentos negros pelo país. Digo tudo isso para falar da nova e aguardada produção brasileira “Medida Provisória” (Executive Order, 2020), longa nacional que estreia no próximo dia 14 de abril depois de ter sido adiado ano passado devido da pandemia em todas as salas de cinema do país que tive a oportunidade de assistir para dar meu parecer em primeira mão.

O longa tem uma premissa bastante interessante ao se passar num futuro distópico onde um governo autoritário ordena que todos cidadãos de origem africana retornem para África, criando caos, protestos e um movimento de resistência clandestino que inspira a nação. O roteiro escrito por Lusa Silvestre e Lázaro Ramos, além de Aldri Anuniciação e Elísio Lopes Jr. consegue criar uma atmosfera oportuna para trazer um assunto relevante que tem um tratamento inicial bastante irônico calcado no humor.

Fonte: Lereby Produções, O Lata Filmes e Globo Filmes

Explico, o filme em seu primeiro ato, brinca muito com a ideia de não levar a sério um autoritarismo travestido de ação social de um governo que tenta criar mecanismo de reparação histórica carregada pelas pessoas negras no Brasil desde o fim da escravidão. O longa segue primariamente a história do advogado Antônio Rodrigues (Alfred Enoch), sua companheira a médica Capitu (Taís Araújo) e seu primo André (Seu Jorge).

A direção de Lázaro Ramos (Falas Negras) dirigindo seu primeiro longa-metragem, é bastante precisa em construir uma atmosfera que soa acolhedora, mas que traz um suspense latente que vai sendo descontruído assim que narrativa vai sendo desenvolvida. Eu gosto como o roteiro consegue enfatizar o absurdo da tal lei “1888” através do humor, mas que aos poucos vai se transformando em um caos generalizado ao mostrar que o governo estava disposto a levar todo cidadão negro ou com descendência de volta ao continente africano.

Sem revelar muito como a história chega neste ponto, posso dizer que “Medida Provisória” se sai bem em estabelecer esse futuro estranho e ameaçador. Acredito que Ramos mostra bastante controle sobre aquilo que quer contar, amparado por uma fotografia que diz não só através de suas tomadas aéreas hipnotizantes, ou seus enquadramentos cheios de referências a cultura negra e afro, mostrando um urbanismo poucas vezes mostrado em tela, sem falar na forma mais íntima que Lázaro filma com câmera próxima dos personagens criando uma forma de intimidade que faz com o público se importe.

Fonte: Lereby Produções, O Lata Filmes e Globo Filmes

Meu maior problema com “Medida Provisória” é quando o filme se torna teatral demais e muito simbólico, esquecendo um pouco de ser cinema. Isso acontece muito na segunda parte do filme. A primeira parte considero a melhor parte da narrativa, tem um humor ácido e irônico, além de uma tensão crescente, isso acontece desde a inserção da premissa até ela atingir seu ápice na cena da aplicação da tal medida provisória, numa sequência absurdamente caótica onde Ramos mostra a verdadeira faceta como diretor ao conseguir criar uma intensa sequência em torno de seus protagonistas.

Por isso acredito que a segunda metade perde muito da força que construiu, ao abdicar de ser cinema em prol a uma pauta social. Veja bem, eu não sou contra a visão de um diretor em querer trazer uma mensagem mais explicita que atinja o expectador, mas fica claro que o longa freia muito suas próprias ideias, se tornando um tanto quanto previsível mesmo que abra boas discussões sobre colorismo, sobre racismo estrutural, sobre lugar de fala, sobre resistência preta, dentre outros assuntos pertinentes.

Falta o roteiro uma melhor consistência no desenvolvimento de seus personagens e em como quer terminar de contar sua própria história. “Medida Provisória” cria um microverso bastante rico que precisava ser melhor explorado, mas acaba por trocar a urgência pelo lirismo perdendo uma oportunidade de ser impactante. Tanto que no final do terceiro ato, sinto que o desfecho é um tanto quanto anticlímax e incompleto, mesmo que a condução da cena seja bonita (a música final é de arrepiar), fica a impressão de que precisava de um melhor polimento na escrita para funcionar de uma forma mais satisfatória.

Fonte: Lereby Produções, O Lata Filmes e Globo Filmes

Sobre o elenco, gosto de todos atores envolvidos na produção, acredito que o britânico de descendência brasileira Alfred Enoch (How To Get Away With Murder) consegue atuar bem, assim como Taís Araújo (O Roubo da Taça), muito bem no papel da médica Capitu. Gosto bastante do Seu Jorge (Cidade de Deus) no papel de André, acho que é um personagem que serve muito bem ao seu propósito que funciona como a voz do roteiro no filme, inclusive seu jeito bem humorado aos absurdos que acontecem em relação ao governo fictício são um dos pontos altos, além da forte cena do espelho onde se pinta. O elenco ainda tem Adriana Esteves (Marighella) e Renata Sorrah (Senhora do Destino) entregando boas atuações.

No geral, “Medida Provisória” é um bom filme, mas talvez lhe falte sair um pouco do campo das homenagens e abraçar seu verdadeiro potencial narrativo. Começa como um thriller de suspense político com ecos de “The Handmaids Tale” (mas com um contexto racial) e tenta terminar como um filme de drama social no melhor estilo “Infiltrado da Klan”, mas acaba não tendo um impacto mais profundo nesta segunda leva. É claro que fico satisfeito em ver pessoas negras na frente e atrás câmeras tomando conta deste filme, mostra que o cinema brasileiro está pronto para criar mais histórias que represente a maior parte da população do país.

O longa mesmo com algumas ressalvas, merece ser assistido pelas discussões que abre, pela forma como é concebido e pela premissa importante. Em um país afogado em notícias falsas e um governo fraco e autoritário, esta narrativa dirigida por Lázaro Ramos se mostra atual e chega para incomodar, nos tirando da zona de conforto, nos fazendo criar uma mente pró revolução, nos tornando anti-racistas e mostrando que a luta por mais igualdade começa conosco e a resistência a ignorância, é nosso maior remédio.

Gostou? Ficou com vontade de assistir? Veja o trailer e se já assistiu, dê sua opinião logo abaixo.

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