“Kindred – Laços de Sangue” – Análise

Um livro sombrio, forte e intenso. Este drama escrito por Octavia Butler é uma ficção científica inteligente com uma análise bastante eficiente sobre racismo e escravidão pelo olhar de uma mulher preta.

Fonte: Morrobranco

Faz um tempo que li “Kindred – Laços de Sangue”, hoje ele virou basicamente um dos meus livros favoritos, não só pela forma como foi escrito, mas pela forma como traz diversas reflexões interessantes e um olhar bastante único sobre a escravidão pelos olhos modernos de sua protagonista intelectual inserida numa época antiga, conservadora e opressora, onde precisa usar de todos os meios possíveis para se adaptar e sobreviver.

O livro foi escrito por Octavia E. Butler, hoje considerada a grande dama da ficção científica e uma das autoras negras mais brilhantes da história principalmente devido a forma como escreve suas narrativas exaltando o protagonismo feminino, as narrativas negras e ainda tecendo reflexões universais sobre poder, injúrias e várias vertentes do que é ser negro dentro um sistema estruturalmente racista e como isso pode gerar um ciclo vicioso que se repete de épocas em épocas.

No caso de “Kindred”, Butler conta a história de Dana, uma jovem escritora negra que vive em Los Angeles na Califórnia e que após estranhos eventos, vai parar numa Maryland pré-Guerra Civil e vê seu destino ligado a um jovem, Rufus, a quem salva de um afogamento logo após ter sido deslocada no tempo. Sem entender, ela volta ao presente, mas se vê em pânico após a anomalia acontecer de novo e de novo, tendo que lutar pela sobrevivência no período da escravidão, enquanto tenta entender o porquê de tudo aquilo estar ocorrendo com ela.

O melhor desta trama escrita por Octavia, é a capacidade da narrativa de intrigar o expectador já nas primeiras páginas, com um mistério no ar e uma personagem forte que vê sua vida mudar drasticamente de uma hora para outra. Todos os ingredientes aqui são peça de um grande quebra cabeça que autora vai desenvolvendo aos poucos enquanto conhecemos melhor sua protagonista e sua vida no presente.

Fonte: Amazon

A história se passa em primeira pessoa o que deixa tudo mais íntimo para o espectador que fica mais próximo de Dana, desta forma a narrativa vai tecendo sua personalidade, sua intelectualidade, sua vida pessoal e sua força como mulher. O mais instigante da personagem ter adquirido esse dom de viajar entre épocas, é a forma como ela lida com a situação toda, primeiro o mistério do desconhecido, depois a calma e a inteligência de analisar que é algo que independente do seu controle, e terceiro qual é a ligação que parece ter com esse garoto Rufus, que pode estar ou não ligado aos seus descendentes neste passado ainda assolado pela escravidão.

A história se passa em primeira pessoa o que deixa tudo mais íntimo para o espectador que Uma coisa que deve ficar clara é que a narrativa de “Kindred” não é imediata, apesar de uma certa dinâmica, ela acelera e desacelera à medida que Dana vai entendendo seu papel no passado. O grande impacto na história no leitor é como enxergamos uma pessoa dos anos 70 indo parar no período da escravidão, a sacada aqui é perceber que mesmo tendo todo o conhecimento possível, Dana ainda precisa se adaptar a um período em que pessoas negras eram tratadas como propriedade e tinham que se submeter aos desmandos do coronelismo branco.

A trama fica mais instigante a cada novo capítulo porque Butler consegue mostrar que mesmo acuada e sem saída, Dana se adapta rápido aquela nova realidade e usa de vários meios quando volta ao presente, para ajudá-la a sobreviver no passado. Ainda assim, a personagem é vulnerável a todo tipo de atrocidade que os outros personagens negros escravizados que ela conhece ao longo da história sofrem, aqui trama não poupa o leitor dos perigosos desse período e causa choque a cada nova reviravolta que acontece tanto com Dana, quanto outros aliados da fazenda em que ela vai parar depois de retornar ao passado.

Fonte : Mundohype

A história guarda a cada nova página uma surpresa e Butler consegue ao mesmo tempo trazer drama e sofrimento, ao mesmo tempo que mostra uma tensão crescente de uma trama que guarda o mistério desse laço invisível e forte entre Dana e Rufus até as suas últimas páginas. Esta história trata de várias temáticas como: preconceito, racismo, relacionamentos interraciais, culpa branca, relações de poder, dentre outros assuntos onde a autora vai extraindo tudo que pode com um olhar bastante crítico e honesto, porém deixando claro que seus personagens agem de acordo com a situação, mas não são estáticos porque convém, mas porque isso significa viver ou morrer nas mãos de cruéis senhores de escravos e capitães do mato implacáveis.

O livro como um todo é simplesmente incrível, mas não é uma leitura fácil, exige estômago em certos momentos e causa revolta e sofrimento em muitos outros, mas Octavia consegue dosar bem os elementos de ficção científica, com o drama vivido por sua protagonista, além de dar a ela vários caminhos e opções, sem falar que ao saber ler e escrever num período onde isso era privilégio apenas de brancos, torna Dana uma personagem que tem seus privilégios mesmo sendo negra, mostrando uma certa hierarquia em relação aos outros escravos, criando uma certa aversão e ódio aos brancos que a conhecem, mas sua empatia, faz com que a personagem seja persuasiva e conquiste até um coração gelado como o de Rufus, mesmo que internamente ela lute não só para tentar fugir daquela situação, como tentar de alguma forma salvar os seus, mesmo que as vezes pareça impossível.

No geral, falar mais sobre “Kindred – Laços de Sangue” seria estragar as surpresas da história, que tem boas reviravoltas, ainda que na sua metade final a leitura fique um pouco cadenciada demais, mas não menos interessante. O melhor desta narrativa que tem quase 52 anos de existência (e continua relevante), é a forma como Octavia E. Butler tem um controle muito bem planejado do que quer contar, usando sua inteligente protagonista para abrir uma reflexão sobre a sociedade no período da escravidão norte americana, além de construir uma alegoria potente ao inserir pessoas de um século avançado em um período totalmente diferente trazendo questionamento de como nós reagiríamos frente as atrocidades cometidas pelos seres humanos daquele período tão triste e retrógrado.

A autora levanta bons argumentos e constrói uma história que provavelmente ficará na mente de cada leitor por muito tempo após o término do livro, uma jornada que é tão transformadora para Dana, quanto para nós, mostrando que as complexidades do racismo, da escravidão e do preconceito não são algo simples de se resolver, aqui Butler mostra que mesmo com conhecimento, a transformação acontece aos poucos e as vezes ela nem mesmo acontece, mas uma coisa fica clara, é preciso quebrar o ciclo da violência racial que corrói nossa sociedade, que transforma indivíduos em monstros e é preciso ter esclarecimento intelectual como agente da mudança para não sucumbir a ignorância e o conservadorismo que normalmente levam a perpetuação de preconceitos e do próprio racismo.  

Onde Encontrar? Em qualquer livraria digital como Amazon ou Saraiva, seja o livro físico ou a versão kindle.

Ficha técnica
Livro: Kindred – Laços da Sangue
Autor: Octavia E. Butler
N° de Páginas: 432
Faixa Etária: Adulto
País de Origem: EUA

Curiosidade: O livro Kindred vai ser adaptado em formato de série pelo canal FX e será escrito por Branden Jacobs-Jenkins (Watchmen) e supervisionado por Courtney Lee-Mitchell, além de ter como produtores Darren Aronofsky e a dupla da série “The Americans”, Joe Weisberg e Joel Fields.

Um comentário sobre ““Kindred – Laços de Sangue” – Análise

Deixe um comentário