Uma boa premissa, um bom desenvolvimento, porém um final um tanto quanto incompleto faz dessa aventura um bom drama de cunho social, mas que podia ter ido mais fundo em suas ideias.

Começo essa crítica dizendo que adoro filmes de viagem no tempo, adoro filmes com looping temporal e adoro quando longas saem do óbvio e trazem protagonista negros para este tipo de história. O cinema sempre foi um lugar de experiências e que vai fundo na ciência e transcende aquilo que nós humanos queremos ver no futuro, como por exemplo, a capacidade de voltar no passado e mudar as coisas, como neste longa da Netflix, “A Gente Se Vê Ontem” (See You Yesterday, 2019), que traz em sua premissa tudo isso e muito mais.
O longa dirigido pelo estreante Stefon Bristol e produzido por Spike Lee (Destacamento Blood) conta a história de C.J. Walker (Eden Duncan-Smith) e seu amigo Sebastian Thomas (Dante Crichlow), dois adolescentes aspirantes a cientistas que em meio a seus experimentos de construir uma máquina do tempo, conseguem uma forma de voltar ao passado por um dia. As coisas ficam intensas, quando o irmão de C.J. é assassinato equivocadamente pela polícia no presente e ela resolve voltar ao passado para mudar o destino trágico dele.
A premissa de “A Gente Se Vê Ontem” não traz novidades, mas ganha peso exatamente por trazer as questões raciais para um enredo que normalmente isso não acontece. O roteiro escrito por Fredrica Bailey e pelo próprio Stefon Bristol, inspirado no curta de mesmo nome que criaram em 2017, consegue estabelecer rápido o universo de C.J. que vive num Brooklyn cheio de vida, com várias culturas e predominado pela comunidade negra e latina vivendo em certa harmonia, ainda que os problemas de violência e abuso policial estejam a espreita ameaçando o convívio dos jovens do lugar.

É bom deixar claro, que o longa é uma ficção científica, com ideias sobre viagem no tempo muito bem estabelecidas e bebendo de várias fontes cinematográficas, como “De Volta Para o Futuro” no cinema inclusive trazendo a participação de Michael J. Fox (De Volta Para o Futuro 1, 2 e 3) como professor de C.J. num cameo bacana e até mesmo da literatura onde vemos referência a dama da ficção científica Octavia E. Butler e seu intenso livro “Kindred – Laços de Sangue”.
Uma vez que a narrativa abraça a ficção científica e é capaz de usar isso de uma forma inteligente dentro da narrativa, a história começa a focar no elemento humano da trama dando ênfase aos problemas sociais da comunidade. O bacana aqui é que o longa mostra personagens negros de uma forma menos óbvia e sem estereótipos, como pessoas com inspiração, vontade de crescer, fazer ciência e conseguir ser bem-sucedidos na vida, isto na figura de C.J. e Sebastian, mas a narrativa não deixa de mostrar o outro lado, aquele vulnerável a violência das comunidades periféricas e como a polícia enxerga esses jovens representado aqui pelo irmão de C.J, Calvin Walker (Astro).
O bacana deste filme é que ele consegue balancear a aventura e uma mensagem social bastante honesta que não foge da realidade. Sua primeira metade é muito boa e muito bem desenvolvida, a história intriga o expectador e o faz querer conhecer mais desses dois protagonistas, principalmente da menina C.J, que é uma garota forte, decidida, inteligente e que encontra na ciência uma forma de aplicar suas habilidades que a tornam uma nerd que não só tem grandes ambições, mas que usa sua capacidade de criar e consertar equipamentos em um meio de ajudar sua própria comunidade também.

O longa fica um pouco mais sério, quando o contexto social se sobrepõe a ficção científica, na verdade o filme ganha ares de drama quando acontece o assassinato de Calvin, trazendo um choque de realidade para C.J. e todos a sua volta. A premissa da viagem do tempo ganha força e motivações através desta tragédia, enquanto no mundo real ficaríamos revoltados com um sistema racial que mata precocemente jovens negros, aqui o roteiro usa a ficção para criar uma possibilidade de mudança para a protagonista de forma que ela possa usar a máquina do tempo para salvar o irmão mais velho.
O dilema social criado, ajuda potencializar a narrativa em algo mais, com a personagem tentando mudar os eventos e o final trágico da história do irmão, mas que ao mexer o tempo, gera graves consequências a pessoas próximas a ela, criando ainda mais complexidade na linha temporal em uma trama que só fica melhor cada nova reviravolta. É claro que o filme não é livre de defeitos, mas no geral, traz uma narrativa bastante enxuta que não chega a ultrapassar uma hora e trinta minutos.
O longa funciona porque o elenco é razoavelmente bom e entrega boas atuações, porém o destaque aqui vai para Eden Duncan-Smith (Annie) que segura a trama muito bem como a protagonista C.J numa atuação que passa segurança e convence como jovem cientista. Outro destaque vai para Dante Crichlow (curta “See You Yesterday”) no papel de Sebastian, além de Johnathan Nieves (Penny Dreadful: City of Angels) no papel de Eduardo, sem falar que é sempre bom citar a participação de Marsha Stephanie Blake (Olhos Que Condenam) no papel da mãe de C.J, ela é a típica coadjuvante que traz a segurança do ator veterano em tela.

De uma forma mais geral, pode-se dizer que “A Gente Se Vê Ontem” é um bom filme, não chega a ser excelente, mas é com certeza muito bom e inspirador na sua proposta e na forma como traz protagonistas negros cientistas numa história de ficção sobre viagem no tempo que tem muita a dizer ao expectador. Ainda que seu terceiro ato termine de forma abrupta na minha visão, ele ainda abre possiblidades com a cena final, possibilidades de reflexão, tanto para a personagem de C.J na sua corrida para mudar o passado, quanto para nós que estamos assistindo nos levando a questionar se vale mesmo a pena mudar os cursos da história.
O longa apesar do baixo orçamento, tem uma produção bastante decente, uma direção sólida, com uma fotografia muito boa, com efeitos visuais razoavelmente bons dentro de suas limitações, além é claro de trazer uma aventura bastante divertida de assistir, apesar de seus momentos mais sérios, porém bastante relevantes que claramente poderiam ser ainda mais aprofundados, pois tinha espaço para isso, no entanto de uma forma mais abrangente, esta aventura de ficção cientifica traz um entretenimento diferente do normal, mais diverso e que vale o tempo investido nele.
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