“Uma Noite Em Miami” – Crítica

Em uma narrativa poderosa que privilegia os grandes diálogos, este drama traz à tona excelente atuações e uma direção bastante consistente de Regina King.

3 Indicações ao Oscar 2021
Incluindo:
Melhor Ator Coadjuvante – Leslie Odom Jr.
Melhor Roteiro Adaptado – Kemp Powers
Fonte: Amazon Prime

Muitos pensadores negros e muitas pessoas negras têm esse pensamento, “ser negro é preciso ter espirito de resistência”, com um passado onde nossos descendentes tiveram sua liberdade privada e foram obrigados a anos, décadas de servidão, ainda tivemos décadas depois de luta para garantir nosso direito de ir e vir. E isso passa de geração para geração, lutas diferentes, mas com a mesma resistência e objetivo de proporcionar uma vida melhor para nossos pais e nossos filhos, seja no âmbito profissional, seja no âmbito social.

Os EUA dos anos 60 e 70 foram marcados por uma luta intensa da população preta norte americana em busca de seus direitos civis, onde várias lideranças negras como Martin Luther King e Malcolm X surgiram, onde vários movimentos raciais avançaram e onde o estopim de vários conflitos fez com que o país entrasse numa gigantesca mudança de mentalidade.

Estou te situando sobre tudo isso para falar da produção da Amazon Prime dirigido por Regina King (Se A Rua Beale Falasse), em “Uma Noite Em Miami” temos a história ficcional de um encontro entre quatro ícones negros dos anos 60, o ativista Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), o lutador Muhammad Ali (Eli Goree), o jogador de futebol americano Jim Brown (Aldis Hodge) e o cantor Sam Cooke (Leslie Odom Jr.) em um hotel em Miami após a vitória surpreendente de Ali sobre o pugilista Sonny Liston.

O longa é baseado numa peça teatral homônima do roteirista Kemp Powers (Soul), que também assina o roteiro do filme, trazendo um momento de discussão e reflexão entre essas quatro figuras históricas e papel delas para com a luta dos direitos civis nos EUA. A trama é fictícia, mas poderia ter sido real, a forma como filme consegue ser orgânico em muitos aspectos torna a narrativa ainda mais surpreendente e envolvente.

Fonte: Amazon Prime

Este é o primeiro filme dirigido por Regina King e acredito que seu maior acerto é ritmo da trama, que se passa em poucos locais, basicamente num quarto de hotel, com poucos momentos em áreas externas, mas tudo se desenvolve de uma forma tão dinâmica que quando você percebe, já passou mais de uma hora de projeção. O primeiro ato é bastante eficaz em situar cada protagonista da trama em seu habitat natural enfatizando a personalidade de cada um em suas respectivas profissões, a impulsividade e firmeza de Malcolm, a irreverência e alegria marota de Ali, a presença imponente de Brown e a voz e eloquência magnífica de Cooke.

É impossível não se importar com esses personagens nos primeiros trinta minutos, tudo isso vale lembrar, por conta do roteiro de Powers, que consegue trabalhar bem as características positivas e negativas deles, além de enfatizar o meio racial em que vivem e o que enfrentam sendo pessoas pretas. Tudo isso orquestrado de uma forma que essas ideologias diferentes entrem em choque no encontro desse quarteto.

Discussões raciais são frequentes e necessárias, principalmente entre pessoas pretas, eu como uma sei como elas acontecem e sei que existe várias pessoas da minha cor que pensam diferente de mim quanto se trata de lutar contra o racismo, desigualdade e preconceito, mas os objetivos sempre acabam se alinhando em um determinado momento em prol dessas mesmas lutas. É isso que “Uma Noite Em Miami” traz, discussões intelectuais bastante complexas, acaloradas e ricas sobre o papel da figura pública negra na luta em favor dos direitos civis negros, que naquele momento estava mais forte do que nunca exigindo que pessoas negras influentes tomassem uma posição numa luta cada vez mais coletiva e decisiva.

Fonte: Amazon Prime

A partir do momento que esse grupo reúne no quarto de hotel, as coisas começam a ficar cada vez mais interessantes, toda a conversa potencializada por Malcolm X é o cerne da discussão toda. O ativista é incisivo em dizer que é preciso que eles, como figuras públicas saiam de cima do muro e consigam através de suas profissões mostrarem que apoiam a luta dos negros que está acontecendo por todo o país.

A história de “Uma Noite Em Miami” funciona muito porque o elenco é muito bom, acho que mesmo não sendo um primor na dramatização, Eli Goree (Riverdale) no papel de Cassius Clay conhecido posteriormente como Muhammad Ali, consegue oferecer a vitalidade e impulsividade que o papel pede, o mesmo pode ser dito de Aldis Hodge (O Homem Invisível) como Jim Brown, este com cenas mais significativas de um esportista que é famoso, mas ainda percebe um barreira racial que o separa dos brancos, ainda que o respeitem pelas suas conquistas históricas como jogador.

Por mais que goste das atuações dos outros dois atores, nenhuma das atuações se comparam ao nível atingindo por Kingsley Ben-Adir (The OA) e Leslie Odom Jr (Hamilton). Adir como Malcolm X é uma força da natureza, cheio de raiva, certezas e uma vontade tremenda de mudar o mundo, aqui o ator é simplesmente impecável capaz de arrancar os melhores diálogos com argumentações super válidas, ainda que não seja compartilhada a contento pelos outros três. Leslie é ainda mais impecável, não só por conseguir travar embates calorosos com Adir, mas por conseguir se mostrar um dos mais talentosos ali com uma voz arrebatadora, aliás, o personagem cai como uma luva para Odom por conta da sua linda voz, ele canta todas as músicas, inclusive aquela da sequência final, que deve arrancar lágrimas de muitos expectadores pelo peso que ela carrega.

É claro que o filme ainda carrega sua aura teatral, mas assim como em “A Voz Suprema do Blues” outro grande longa da temporada, este longa consegue deixar tudo bastante cinematográfico, mais uma vez é importante elogiar Regina King aqui, afinal ela consegue boas tomadas que privilegiam as atuações e mostra personalidade ao conseguir ditar muito bem os momentos mais intensos das discussões, com momentos de respiro, algo que o filme se aproveita para crescer levantando questões importantes da negritude, seja no âmbito econômico, seja no âmbito social, inclusive é importante ressaltar o excelente diálogo entre Jim e Malcolm sobre colorismo, é breve, mas carregado de uma complexidade tão atual.

Fonte: Amazon Prime

Em muitos aspectos “Uma Noite Em Miami” é um excelente filme, ainda que deixe um gostinho de quero mais, o longa traz boas discussões feitas por intelectuais negros de estirpe que prende a atenção do telespectador por quase duas horas, numa produção bastante caprichada, com figurinos impecáveis, atuações de primeira, trilha sonora bem-feita e uma direção bastante consistente. No entanto é importante enfatizar roteiro de Powers que deixa a narrativa ainda mais rica, não só pelo contexto histórico, mas por conseguir fazer algo fictício soar tão real, tão atemporal e tão importante.

Ainda que esses quatro ícones negros não tenham se encontrado na vida real, quando você assiste ao filme, soa como se esse encontro pudesse realmente ter acontecido, não só pela riqueza das discussões, mas porque os personagens saem maiores dela, mostrando que no final das contas, mesmo que discordando em alguns pontos, é possível chegar num consenso em uma luta em que o coletivo e as grandes vozes fazem a diferença para mudar uma realidade como esta dos direitos civis dos negros não só dos EUA, mas vários outros países do nosso planeta ao longo de décadas.   

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