“Os Quatro da Candelária” – Minissérie – Crítica

Sonhos interrompidos! No mês da Consciência Negra, a nova minissérie brasileira da Netflix resgata um dos crimes mais chocantes da história do Brasil, ao recontar a história da Chacina da Candelária sobre os olhos das vítimas numa trama triste, poética e trágica.

Fonte: Netflix

Não existe mal maior, do que a indiferença. Em termos de sociedade, somos a todo tempo testados sobre como vivemos e lidamos com a empatia em relação ao próximo, afinal em termos religiosos, um dos mandamentos de Deus, é amar o próximo como a ti mesmo. Infelizmente, a maior parte da sociedade ignora a maioria dos problemas sociais, ou por impotência, ou por simplesmente não importar, o que é ainda pior.

Abraço este contexto, para falar da minissérie nacional baseada em fatos, “Os Quatro da Candelária”, produzida pela Netflix em parceria com a Jabuti Filmes e Kromaki, a história conta as 36 horas da vida de quatro jovens em situação de rua antes de uma chacina de crianças nas portas da Igreja da Candelária, mostrando um pouco da vida dessas crianças pretas e pobres que tiveram suas vidas interrompidas precocemente por uma tragédia que chocou o Brasil.

No mês da Consciência Negra, a obra criada por Luis Lomenha nos convida a refletir e também a se emocionar com a história de Douglas (Samuel Silva), Sete (Patrick Congo), Pipoca (Wendy Queiroz) e Jesus (Andrei Marques), quatro jovens crianças que tinham sonhos, mas acabaram abraçando a criminalidade mostrando um completo abandono do poder público, fazendo que muito dessas vidas façam o que podem para sobreviver.

A minissérie parte da perspectiva de quatro pontos de vista distintos de um mesmo evento, é desta forma que Lomenha e seus roteiristas aprofundam na trama destas crianças até o fatídico dia.

Fonte: Netflix

A narrativa começa pelo ponto de vista de Douglas, uma criança que 36 horas antes dos eventos tinha como o único desejo arranjar dinheiro para dar um enterro digno ao “pai” Paulinho (Leandro Firmino), a única pessoa que olhou para ele de uma forma diferente mesmo vivendo na rua aos pés da Igreja da Candelária no centro do Rio de Janeiro em 1993.

A direção de Luis Lomenha e Márcia Faria preza pela sensibilidade em um piloto que é beneficiado pelo cuidado técnico e um roteiro que não esconde a veia criminosa do pequeno Douglas, que é movido por uma tragédia do passado e passa viver na rua na companhia dos amigos Sete, Pipoca e Jesus, mas vê em Paulinho a chance de ter um lar e ser amado novamente.

Veja bem, o sonho de Douglas era simples, ao invés disso, o garoto acaba caindo na criminalidade suscetível a violência urbana e drogas, se agarrando nas suas últimas horas, a memória da única pessoa que o olhava com dignidade, lhe conferindo um enterro melhor com caixão e todos rituais possíveis.

A minissérie nos ganha exatamente porque a atuação do pequeno Samuel Silva é magnética e a melhor do elenco, com um carisma imenso o garoto é esperto, malandro, boca aberta, mas com um coração imenso que se beneficia de um roteiro que nunca esquece que antes de ser um morador de rua, estamos falando de crianças com sonhos de uma vida melhor como todos nós.

Fonte: Netflix

A série toma um ar mais maduro na trama de Sete, o mais velho da turma e preste a ficar de maior, o garoto tinha um sonho de se tornar marinheiro, e 36 horas antes seu futuro ainda era incerto. Mantinha um romance secreto com Jorge (Bruno Gagliasso) que tinha família e jamais poderia assumi-lo.

O adolescente era assumidamente gay e através de flashbacks vemos sua infância sofrida por assumir quem é nas mãos do terrível padrasto. É desta forma que a narrativa cresce, apoiada por uma edição que se atenta aos detalhes toda vez que o ponto de vista muda, conectando eventos que se repetem, mas ganham cenas extras para entendermos as motivações dos personagens.

Tudo fica ainda melhor com a boa atuação de Patrick Congo e quando percebemos o cuidado do texto em não isentar o lado violento dos personagens, sem romantizar, mas sempre mostrando que toda essa revolta e ódio tem uma origem que infelizmente foi moldada pela dura realidade dentro de orfanatos, na rua e nas periferias brasileiras, onde pessoas pretas e pobres são empurradas para margem sem nenhuma perspectiva de vida.

Fonte: Netflix

Felizmente, no meio de tantas adversidades, somos capturados pela emoção, é onde “Os Quatro da Candelária” se torna um produto nacional indispensável que não só tenta retratar as vésperas de um evento trágico, mas faz um paralelo que faz refletir tendo como palco uma Igreja que também é um centro histórico construído por escravos as centenas de anos atrás tornando assim as crianças pretas que dormem nestas escadas descendentes ancestrais em tragédias que se repetem a séculos.

É desta forma que acompanhamos a história de Pipoca, uma menina carismática que sonha com a volta da mãe que a deixou em um orfanato, mas que vê na oportunidade no casamento famoso na noite da chacina de aparecer na TV e assim realizar seu sonho. A atriz mirim Wendy Queiroz é uma doçura, daquelas atuações que deixam o coração quentinho e nos faz abraçar ainda mais a personagem, principalmente sua relação mais próxima com Sete.

Mostrando que um dos pontos positivos da série é exatamente focar nos personagens aprofundando em seus dramas pessoais e usando ganchos poderosos que nos deixam com coração na mão para saber se a pequena e seus amigos morreram ou sobreviveram a tragédia.

Fonte: Netflix

O último episódio focado no jovem Jesus, é ponto de vista que conecta todas as narrativas dando ainda mais peso aos eventos que antecedem a chacina. Seja na sequência da fábrica de chocolate, ou na sequência no banho de chafariz em frente da igreja, ou até mesmo no momento do massacre em si, onde é revelado o destino dos quatro em um desfecho pesado, cruel, mostrando uma das maiores barbáries da história do Brasil.

Talvez o capítulo focado no personagem do ator Andrei Marques seja o menos polido que anteriores, mas não menos impactante, principalmente por conta da atuação do elenco que segura qualquer previsibilidade que a narrativa possa ter. A verdade é que a trama focada no jovem Jesus é um romance trágico de um garoto que cresceu na violência, sem família e passou as últimas horas antes da tragédia arranjando uma forma conquistar o coração de Jéssica (Maria Ibraim), além de apoiar o amigo Douglas na missão de dar um enterro digno ao pai.

No final das contas, a minissérie é uma obra única, sobre sonhos, que equilibra bem drama e suspense de um crime que mudou vidas no dia 23 de julho de 1993. Em termos de produção a série é impecável, principalmente na questão da ambientação, trilha sonora e na forma como captura a ancestralidade e negritude negra intercalando realidade com realismo fantástico de uma forma sensível, criando uma saída imaginativa para crianças que sofriam uma dura realidade, mas que tinham em seus sonhos uma válvula de escape onde ainda poderiam buscar um momento de felicidade.

Fonte: Netflix

Por tudo que foi comentado, pode-se dizer que “Os Quatro da Candelária” é uma narrativa que merece ser assistida, não só pela qualidade, mas pelas atuações consistentes e por nos fazer refletir sobre como enxergamos nossas crianças em situação de rua. Em um país que ainda mata muitos jovens negros inclusive hoje em 2024, olhar para o passado de 1993, é uma forma de fazermos diferente no presente, seja apoiando obras sociais, seja cobrando autoridades que façam sua função e lutando para que haja menos impunidades. O que não pode é ficarmos parados vendo nossa juventude se perder. É isto que a narrativa mostra, de uma forma forte, potente e necessária. Crianças merecem sonhar, e por que não com um futuro melhor?

Gostou? Veja o trailer e comente abaixo se já conferiu a minissérie.

3 comentários sobre ““Os Quatro da Candelária” – Minissérie – Crítica

  1. Confesso que não conhecia a história e a produção mexeu demais comigo. Vim por todo o barulho que rolou nas redes a respeito do segundo episódio, mas ela vai muito além disso. Impossível não ficar balançado ao ver que aqueles quatro queriam apenas realizar seus sonhos, esses que eram coisas ‘simples’. O final me quebrou muito e me deixou pensativo por vários motivos. Parabéns pelo texto!

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