“Ficção Americana” – Crítica

Um filme honesto que expõe estereótipos raciais, traz reflexões e escancara com acidez a “culpa branca” numa narrativa inteligente, bem humorada e que fica ainda melhor com a excelente atuação de Jeffrey Wright.

5 Indicações ao Oscar 2024
Vencedor do Oscar
Melhor Roteiro Adaptado – Cord Jefferson
Fonte: MGM Studios e Amazon Studios

O melhor do cinema é sua capacidade de mostrar que algumas produções que não são só apenas entretenimento, mas são inteligentes o suficiente para entregar mensagens importantes, as vezes de forma explicita, as vezes de forma indireta. Isto normalmente faz com que o expectador saia da zona de conforto e consiga pensar além do que o gênero oferece, resultando em obras magníficas e atemporais.

Estou falando disto tudo para comentar sobre o longa da MGM Studios em associação com a Amazon Studios, “Ficção Americana” (American Fiction, 2023), narrativa baseado no livro “Erasure” de Percival Everett, de 2001, que conta a história de um professor romancista negro frustrado que nunca obteve sucesso com seus livros, resolve escrever uma obra estereotipada apenas por despeito, porém acaba chamando atenção de uma editora que passa a pressiona-lo para que o livro seja publicado.

O filme escrito e dirigido pelo estreante Cord Jefferson é cheio de personalidade e mostra através do humor e leveza um assunto complexo que fala sobre estereótipos raciais que acaba não ficando apenas restrito ao meio literário foco da trama, mas também a qualquer forma de entretenimento, ambiente profissional ou ambiente social quando observamos em um escopo maior, que colocam pessoas pretas dentro de um parâmetro que condicionam a fazer apenas aquilo que as pessoas brancas acham que elas sejam capazes de fazer.

Fonte: MGM Studios e Amazon Studios

O personagem Thelonious “Monk” Ellison (Jeffrey Wright) é exatamente o oposto dos autores negros que acabam fazendo sucesso na literatura por enfatizar os estereótipos comuns as pessoas pretas principalmente envolvendo linguagem e tramas que se passam no gueto, como o sucesso da autora Sintara Golden (Issa Rae). O romancista escreve suas obras sem expor as questões raciais, pois não querer se enquadrar apenas como um autor afro-americano, ainda assim seus livros se encontram apenas nas prateleiras direcionadas a este nicho mesmo que suas obras tenham um gênero definido.

Esta falta inserção orgânica é usada como ponto inicial por Cord Jefferson para explorar seus comentários sociais criticando de forma direta como a sociedade estadunidense só se interessa em obras que mostrem personagens negros em determinadas condições e situações, principalmente envolvendo trauma e violência. A narrativa se divide bem entre este arco de Monk, que começa a ser conhecido e ganhar dinheiro após fazer um livro cheio de maneirismo e estereótipos, enquanto acompanhamos sua vida pessoal se transformar de uma hora para outra ao visitar sua família durante um Festival de Livros na sua antiga cidade.

O melhor de “Ficção Americana” é como constrói a trama de Monk para não só mostrar seu ponto de vista crítico as obras negras literárias atuais, mas também serve como uma jornada de autoconhecimento e resgate das raízes para o personagem que possui muitos assuntos mal resolvidos com a família, seja com a irmã Lisa (Tracee Ellis Ross), ou com a mãe Agnes (Leslie Uggams), ou até mesmo com o irmão Clifford (Sterling K. Brown), muito devido a tragédia ocorrida com pai que acabou dividindo toda a família.

É nesta jornada que vemos Jeffrey Wright (Rustin) se destacar com um personagem complexo, questionador e passivo, que vê banalidade no sucesso de um livro que escreve durante uma noite e acaba fazendo um sucesso estrondoso gerando uma grande confusão que o mesmo não consegue desvencilhar. Ao mesmo tempo que precisa lidar com uma perda pessoal e uma reconexão com passado que faz Wright entregar uma atuação carismática e ao mesmo tempo emocional.

Fonte: MGM Studios e Amazon Studios

Tudo isso amparado por boas atuações do elenco coadjuvante que apesar de não ter tantos destaques, ajudam a deixar o filme melhor. Vale a pena mencionar aqui Sterling K. Brown (As Ondas), Erika Alexander (Corra!), Tracee Elis Ross (Black-Ish) e Myra Lucretia Taylor (Doentes de Amor), todos particularmente bons com momentos significativos, que inclusive servem de contraponto crítico as histórias pretas estereotipadas que o personagem de Monk tanto detesta, com tramas sentimentais com personagens riquíssimos mostrando que histórias emocionantes de pessoas negras mais parecida com o que se vê na realidade.

E seguindo desta forma que a obra cresce, a trilha sonora de Laura Karpman (As Marvels) é delicada e bem conduzida, a cinematografia de Cristina Dunlap é lindíssima e a direção de Cord é muito consistente jamais perdendo o foco daquilo que quer contar, mas claramente o ponto forte da narrativa é seu roteiro que não é só bem escrito, como usa de metáfora, metalinguagens e analogias para trazer um humor ácido que deve deixar pessoas brancas desconfortáveis e pessoas pretas reflexivas, destaque para cena entre Monk e Sintara perto do final, que sintetiza bem que a visão do protagonista é pertinente, mas pode cair no risco de invalidar histórias pretas reais.

De uma forma geral, “Ficção Americana” é um excelente filme, dizer mais pode estragar a experiência, mas o texto é incisivo na forma como mostra o quanto a sociedade precisa evoluir em relação a como enxerga obras literárias negras, assim como as pessoas negras, não só apenas o que elas estão acostumadas a enxergar. O longa é inteligente em tratar isto de uma forma bem humorada, mas é brutal na forma como pega o expectador desprevenido quando os créditos começam a subir, afinal um longa desses deve gerar boas discussões e mostrar que histórias negras são únicas e variadas, não apenas um mecanismo para aliviar a “culpa branca” em premiações, servir como entretenimento ou para compensar anos de exclusão. Nós somos muitos mais que isto.

“Texto impecável, trama bem desenvolvida e uma direção consistente de Chord Jefferson, transforma “Ficção Americana” numa obra bastante atual e incisiva na forma como faz boas críticas sociais e raciais, elevada por uma atuação competente de Jeffrey Wright. Um dos longas mais bem escritos da temporada.” – Certificado Excelência Negra

Gostou? Veja o trailer abaixo e comente se já conferiu o filme.

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