Cinema nacional respira e passa bem. Este longa que conta a história de uma família negra e reflete uma realidade política diferente, traz uma das obras nacionais mais autênticas, atuais, emocionantes e arrebatadoras dos últimos anos.

A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 foi um dos momentos mais delicados da história do Brasil, não só por ser um governo que se mostrava agressivo nas ideias, mas por trazer à tona o pior do brasileiro representado da pior forma possível num país que ficou dividido ao meio e viu tudo que foi construído no período democrático ser desmontado incluindo programas sociais que ajudavam a população mais pobre a sobreviver. Tudo isso foi agravado por uma pandemia que deixou 600 mil mortos que poderiam ser evitados senão fosse a desastrosa administração do principal ocupante do poder executivo.
Seguindo esta onda de tensão, medo e insegurança que se instaurou o país, a arte foi nossa válvula de escape e para o cinema brasileiro foi um verdadeiro teste de resistência, com investimento quase zerado, algo que se espalhou por todo setor da cultura que praticamente deixou de existir devido a falta de recursos, mas ainda assim, obras pré-aprovadas resistiram e uma delas foi “Marte Um” , uma produção da Filmes de Plástico e Canal Brasil, dirigido e escrito pelo mineiro Gabriel Martins (No Coração do Mundo) trazendo uma visão diferente desse novo Brasil que surgiu pós outubro de 2018.
A trama conta a história de uma família negra de classe média baixa que tenta manter seu espirito e sonhos nos meses seguintes a eleição de um presidente de direita, um homem que representa tudo aquilo que eles não são. A sinopse é clara o suficiente para mostrar que Gabriel Martins estava disposto a mostrar um Brasil do dia-a-dia, de brasileiros com aspirações e sobrevivendo mesmo recebendo pouco, mas sempre mantendo otimismo para tentar mudar de realidade.

O roteiro é eficiente em estabelecer essa comunidade situada na capital de Minas Gerais, Belo Horizonte, neste universo cheio de mineiridades temos a família de Deivinho (Cícero Lucas), composta por sua irmã mais velha Eunice (Camilla Damião) e seus pais Wellington (Carlos Francisco) e Tercia (Rejane Faria), o garoto é aspirante a jogador para orgulho do pai, enquanto sua irmã almeja alcançar sua independência e viver um grande amor com a namorada Joana (Ana Hilário), a mãe por sua vez acha que está passando por uma maré de azar depois sofrer com um acontecimento inesperado em um bar, enquanto o pai trabalha em condomínio de luxo para manter a família, mas sempre de olho no futuro do filho como futuro jogador.
É com esses elementos que Martins começa a tecer sua história e através de uma família que não só representa a negritude brasileira em sua essência, mas que em outros aspectos também representa a classe pobre e humilde brasileira que acaba falando de forma universal independentemente da cor, é desta forma que o diretor roteirista consegue trazer ricos paralelos e mostrar um Brasil que raramente aparece na TV de uma forma não pessimista, mas aqui ganha espaço através de arcos de cada membro desta família que representa o espirito do brasileiro durante um período que muitos perderam a fé no sistema político.
O texto de Gabriel ressona tantos elementos interessantes que quanto mais atenção o expectador tem em “Marte Um”, mais se consegue extrair nas críticas sociais embutidas nos fazendo pensar e traçar uma simetria e um senso crítico bastante importante com o momento político vivido nestes últimos quatro anos. E tudo sem precisar ser muito explícito ou gratuito, tudo isso graças a uma direção com apuro técnico que realmente faz o longa conversa como cinema sem panfletagem, mas com um retrato brutal de uma realidade que provavelmente vai dialogar com muitos brasileiros que já passaram ou se encontram em situações semelhantes.

A constante tensão que a narrativa traz através do clima de amenidade em face a um futuro até então que naquele momento seria nada mais do que uma incógnita, faz com que o diretor aproveite para trazer um cerne totalmente otimista através das escolhas de seus personagens e é onde também a parte técnica do filme começa a sobressair, fotografia traz uma luz diferente a periferia da capital mineira, intercalando planos abertos, mas na maior parte contida em ambientes internos tornando a narrativa mais próxima do expectador trazendo a sensação do “gente como a gente” a todo momento representado por uma simples comemoração de natal, um jogo de futebol cheio de rivalidade entre Cruzeiro e Atlético, ou o famoso churrasquinho no quintal.
A trilha sonora é outro ponto interessante do filme, bem como seu elenco, que por mais que falte um amadurecimento dramático, ainda se saem bem. Os grandes destaques prá mim são: Rejane Faria no papel de Tércia, consegue passar a constante tensão e medo da personagem e nos traz uma sensação de algo vai acontecer a cada cena. Outro destaque é Camilla Damião no papel de Eunice, principalmente nas sequências de discussão, a atriz tem personalidade em cena. Carlos Francisco (Bacurau) está bem como Wellington e Cícero Lucas está um pouco inseguro em alguns momentos, mas no geral consegue entregar um bom trabalho no papel do pequeno Deivinho.
No geral, chega a ser irônico terminar este ano escrevendo sobre “Marte Um”, um belíssimo filme e um dos melhores exemplares nacionais dos últimos anos (a última cena é um abraço quentinho no coração), que merece ser assistido por todos os brasileiros, pois traz uma verdadeira síntese do que é ser brasileiro materializando seu amor pelo futebol, sua vontade de vencer, seus perrengues e corres diários e a força para mudar sua própria realidade num momento sombrio. O protagonismo negro em evidência na frente e atrás das câmeras é um presente, pois Gabriel Martins realmente captura a aura de milhares negros e negras pelo país em diversos momentos causando identificação imediata.

O longa ainda encontra tempo para de forma bastante enfática valorizar a educação, a família, a liberdade de gênero, a ciência, dentre outros assuntos relevantes que vão surgindo numa narrativa rica que se passa pelos olhos de um garoto apaixonado pelas estrelas com desejo de voar alto, isto mostra também que as crianças são o futuro do país e a porta para quebrarmos o conservadorismo e o retrocesso, abrindo espaço para diversidade e a inclusão social numa apaixonada população brasileira que merece ser feliz.
Feliz 2023 a todos, obrigado por lerem os textos do Hype Negro, espero vocês ano que vem. Feliz governo novo, feliz volta do otimismo, seguimos….

Este texto é dedicado a Edson Arantes do Nascimento, nosso eterno Pelé.

Um comentário sobre ““Marte Um” – Crítica”