“Um Dia Com Jerusa” – Crítica

Dando o merecido protagonismo para mulher preta. Este filme nacional chega para documentar e elevar a história da mulher negra brasileira usando como base o legado e a ancestralidade afro.

Fonte: Netflix

A mulher preta nas estatísticas brasileiras, infelizmente fica na base da pirâmide social em vários aspectos, sempre a que ganha menos entre o grupo de mulheres, sempre a que lucra menos no grupo entre homens e mulheres, sempre a que sofre mais com pobreza, miséria, relacionamentos dentre os outros aspectos, mas a verdade é que o Brasil não seria nada, senão fosse essas mulheres fortes serem base de uma construção social que vai além dos parâmetros estabelecidos pela sociedade brasileira.

A muito tempo as mulheres negras do nosso país merecem um protagonismo, a muito tempo as mulheres negras brasileiras merecem cravar seu espaço entre todas áreas normalmente ocupada por pessoas brancas. E quando será que esse tempo virá? Esse tempo é agora, pois cada vez mais vemos empresárias negras, médicas negras, advogadas negras estão ocupando mais espaço e cada vez se emponderam mais para não só ocupar seu espaço de direito, mas também para consolidar um legado construído lá atrás pelas suas descendentes, que começaram essa luta por espaço e por uma vida digna numa sociedade que muitas vezes não estava/está preparada para lidar com a força da mulher preta.

Digo isso, pois o filme dirigido por Viviane Ferreira (Pessoas – Contar Para Viver), baseado no curta de 2014, “O Dia Com Jerusa”, o drama “Um Dia Com Jerusa” (2020) da Odun Filmes engloba tudo isso que mencionei e muito mais. O longa traz o protagonismo da mulher preta brasileira através de gerações numa narrativa simples, mas carregada de complexidade, ancestralidade e doçura ao contar a história da sensitiva Silvia (Débora Marçal), uma jovem pesquisadora de mercado, que vive os apertos da vida ao trabalhar neste subemprego enquanto espera o resultado de um concurso público, em paralelo a sua história, dona Jerusa (Léa Garcia) vive uma vida pacata no Bairro do Bixiga em São Paulo as vésperas do seu aniversário de 77 anos. O encontro entre Silvia e Jerusa leva ao resgaste de memórias e momentos do passado enquanto a senhora espera a chegada da família para sua festa de aniversário.

Fonte: Netflix

Este longa é um achado, não só por possuir várias camadas que vão desabrochando a cada nova cena em uma narrativa que mostra as lutas diárias de Silvia e as peripécias de dona Jerusa, mas conseguir ser sutil e direta em vários aspectos da obra. Cada frame aqui é importante, cada frame aqui é carregado de algum significado, talvez o texto escrito pela própria Viviane Ferreira soe teatral em alguns aspectos, mas ele é poderoso em embalar a trajetória do povo preto brasileiro como alicerce do Brasil que deveria existir, mas que acaba sendo silenciado na vida real.

O filme possui 1 hora e 13 minutos, mas eles são suficientes para mostrar o poder narrativo de uma história que parece comum, mas no final das contas toca fundo na alma, principalmente se você for uma pessoa preta assistindo. Enquanto vemos Silvia, uma mulher preta, lésbica, com ensino superior, tentando cravar seu espaço e sofrendo com a expectativa de passar ou não num concurso para ter um futuro, vemos aqui a exaltação da luta diária de várias mulheres negras tentando de formas diferentes e sofrendo os mesmos percalços em busca do sucesso profissional e pessoal.

A verdade é que “Um Dia Com Jerusa” é um tributo ao passado que reflete no presente ao colocar Dona Jerusa e Silvia para dividirem suas histórias num mesmo espaço, o roteiro consegue trazer algo que transcende o espaço tempo regado a muita religiosidade através dos dons mediúnicos de Silvia trazendo muitos pontos em comuns de duas mulheres pretas de trajetória diferentes, mas que sofrem ou sofreram dificuldades semelhantes ao longo de suas vidas, mas sem perder a força e sempre arranjando uma forma de aproveitar os vários aspectos positivos da vida.

Fonte: Netflix

Enquanto vemos uma dona Jerusa saudosa em relação ao passado, feliz por tudo que construiu na vida apesar das dificuldades e da solidão que vive no presente, embarcamos numa jornada ancestral ao passado enquanto ela começa a contar sua história a Silvia. Gosto como a diretora Viviane consegue capturar a aura do roteiro de uma forma não linear conseguindo mostrar uma sensibilidade narrativa bem interessante ao usar o passado de dona Jerusa como paralelo para história da população negra brasileira, é impossível não se emocionar e se identificar com tamanho peso dramático que as cenas de flashbacks ou de transe de Silvia nos proporcionam na trama.

São tantos aspectos a serem comentado deste longa, que poderia passar o dia comentando, mas fica óbvio que “Um Dia Com Jerusa” merece é ser assistido e apreciado. A narrativa tem uma boa fluidez, com uma fotografia belíssima, com uma direção que privilegia os enquadramentos para focar na reação e nos ótimos diálogos entre os personagens, sem falar na sutil trilha sonora com músicas brasileiras e que traz sons africanos que dão a sensação de resgaste ao passado.

Outro ponto deste filme é que ele tem muita autenticidade, com um elenco majoritariamente negro, o enredo cria um Brasil que deveria estar nas capas de revista, ocupando espaço nas universidades e salas de aulas, além das diversas profissões em áreas mais elevadas, é bacana como uma simples metáfora narrativa tem um grande peso ao vermos o quão longe o povo preto pode chegar e o quanto normalizado seria se tivesse realmente o espaço igualitário dentro da sociedade brasileira.

Fonte: Netflix

Falando em elenco, não há como não citar as duas protagonistas da obra, gosto de Débora Marçal (O Dia Com Jerusa) no papel de Silvia, talvez lhe falte as vezes um pouco de maturidade e impacto em algumas cenas, mas na maior parte do tempo Marçal mostra força, altivez e resiliência ao se entregar em um papel que é uma das vertentes e síntese da mulher preta moderna. Léa Garcia (As Filhas do Vento) no papel de dona Jerusa é simplesmente incrível, a atriz sempre foi uma das damas da televisão brasileira e sempre mereceu os holofotes para si, aqui ela ganha um protagonismo bem vindo de uma senhorinha com muita história para contar, calejada pelo tempo, mas que em 77 anos de vida mostra uma matriarca amorosa e orgulhosa de tudo que construiu para si e sua família. O filme ainda conta com a bem vinda participação de luxo de Antônio Pitanga (Pitanga).

O importante aqui é ter paciência para entender como a narrativa se desenvolve, “Um Dia Com Jerusa” não é uma história de respostas fáceis, mas sim uma história detalhes e atenção, quanto mais atento e mais você se deixar se levar pelo enredo, mais você consegue capturar a essência da relação de Silvia e Jerusa, que em muitos aspectos parecem até ter realmente uma relação de neta e vó.

Fonte: Netflix

De uma forma geral, o longa é uma bem vinda exaltação da cultura negra (religião, samba, carnaval dentre outras virtudes) e uma exaltação do povo preto brasileiro, mas principalmente, ele dá um protagonismo muito bem vindo para as mulheres pretas ao contar a história de duas gerações diferentes de mulheres que tem mais em comum e muito a aprender entre elas do que imaginam, numa trama que traz sensibilidade e emoção, ao colocar em pauta a solidão da mulher preta, mas que ainda assim encontra uma forma de exaltar sua força num enredo poucas vezes visto no cinema nacional.

Sendo assim “Um Dia Com Jerusa” é um marco, não só por ser história contada por mulheres negras, mas protagonizado por elas também, com um cuidado técnico impressionante, uma atenção impecável aos detalhes, essa produção que tem parceria de exibição entre o Canal Brasil e a Netflix, merece ser assistido e apreciado em todos seus aspectos, seja como forma de reflexão, seja como forma de exaltar as mulheres pretas brasileiras, pois essas são parte importante da construção do país e merecem mais espaço e seu lugar no topo da nossa história.

Gostou? Assista ao trailer. Se gostou do longa, comenta abaixo o que achou.

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