Legado de família! A terceira obra de August Wilson é adaptada em formato de longa metragem trazendo um filme denso, que se apoia na ancestralidade negra e entrega fortes atuações de John David Washington e Danielle Deadwyler.

“Sentiu isso, isto é sua família, isto é seu sangue.”, diz o personagem de John David Washington a sua sobrinha em um determinado ponto do filme “Piano de Família” (The Piano Lesson, 2024), drama da Netflix e sua aposta para a temporada de premiações que estreou no dia 22 de novembro e adapta mais uma obra do dramaturgo e escritor August Wilson, seguindo os premiados “Um Limite Entre Nós” (Fences) de 2016 e o magnífico “A Voz Suprema do Blues” (Ma Rainey’s Black Bottom) de 2020, temos mais uma obra produzida por Denzel Washington (A Tragédia de MacBeth) e Tood Black (Um Limite Entre Nós).
Considerado por muitos estudiosos, uma das adaptações mais complexas de Wilson, este longa dirigido pelo estreante Malcolm Washington (filho do Denzel) é uma mistura de drama, que usa elementos de suspense e terror ao contar a história da família de Boy Willie Charles (John David Washington), que vivem na casa do tio Doaker Charles (Samuel L. Jakcson), onde os conflitos começam a se intensificar quando precisam decidir que destino do piano da família que está com eles a gerações.
Começo a dizendo que “Piano de Família” não tem uma linguagem fácil de compreender e precisa de muita atenção para ter engajamento na história. A trama que se passa pouco depois da Grande Depressão nos EUA de 1936, traz monólogos extensivos, dinâmicas de família que basicamente se passam num mesmo local e elementos de suspense que vão crescendo à medida que vamos conhecendo mais sobre a história da família.

Talvez o grande desafio de Malcolm que também escreve o roteiro em conjunto com Virgil Williams (Mudbound – Lágrimas do Mississipi), seja quebrar as amarras que separam o texto retirado de uma peça de teatro, para uma linguagem cinematográfica mais acessível, mas sem perder a essência do texto de Wilson, algo que as produções anteriores sofreram um pouco para se adequar.
Ao que parece esta evolução como adaptação chega a seu auge em “Piano de Família”, que funciona como longa exatamente por expandir o texto de tal forma que realmente sentimos uma narrativa vibrante que se baseia muito no legado da família, representado por um piano conta histórias ancestrais através dos entalhes feitos em sua estrutura ligando décadas de luta, sobrevivência de uma família negra que ainda tem o passado ferido pelos vestígios da escravidão.
O filme também lida com conflitos que movimentam a trama de tal forma que abre feridas do passado e molda a personalidade forte de cada personagem. Enquanto Boy Willie (John David) é o filho que quer vender o piano para comprar uma terra para seguir seu caminho moldado pelo falecido pai Boy Charles (Stephan James), temos sua irmã Berniece (Danielle Deadwyler), que não deseja vender o piano, acreditando que nele está contigo os fantasmas da família numa forte ligação ancestral com o objeto.

É através do conflito desses dois irmãos que os personagens como o tio Doaker Charles (Jakcson), o melhor amigo de Boy, Lymon Jackson (Ray Fisher), a pequena Maretha (Skylar Aleece Smith) filha de Berniece, o tio Wining Boy (Michael Potts) irmão de Doaker, além do pastor Avery (Corey Hawkins) se envolvem nessa guerra familiar que traz antigos rancores em discussões opostas que parecem entrar em ebulição a cada nova cena.
O cerne de “Piano de Família” é exatamente a forma como fala sobre o amor familiar e como isto reverbera através de eras. A grande sacada de Malcolm Washington é não mexer nas estruturas dos diálogos que são riquíssimos e deixar que sua câmera curiosa privilegiei o talento do elenco que acaba respondendo com atuações sólidas que parecem crescer dando ainda mais complexidade aos personagens.
Uma dessas atuações é a do personagem de John David Washington (Resistência), seu Boy Willie carrega uma fúria guardada e uma vontade de transformar o legado do tio e do pai em algo produtivo, representando muito pessoas pretas que precisam perseverar através do trabalho, mas precisam começar de um lugar. Existe um sentimento de busca de liberdade no personagem que Washington consegue mostrar em tela em uma de suas melhores atuações na sua curta carreira.

Porém, em um elenco com a presença de atores veteranos consagrados como Samuel L. Jackson (As Marvels, Invasão Secreta) e Michael Botts (Rustin) que estão muito bem, além de boas atuações de Ray Fisher (Rebel Moon: Parte 1 e Parte 2) e Corey Hawkins (A Cor Púrpura), nenhuma atuação se compara a de Danielle Deadwyler (Till – Busca Por Justiça), sua Berniece é uma força da natureza, trazendo as dores das mulheres pretas de uma forma cativante e tocante que eleva o texto de uma forma excepcional. Deadwyler cresce como atriz a cada novo trabalho e o texto adaptado de August Wilson parece servir como uma luva para seu talento, devorando cada cena que entra com destaque a que contracena com John David Washington sobre o papel dos pais no legado da família.
É notável como a ancestralidade é outro fator carrega a aura desse longa como uma força sobrenatural que entra em conflito com algo que parece estar atormentando a família em sua própria residência, que além do drama tradicional, parece constantemente flertar com elementos de terror, elevados pela trilha sonora esplêndida de Alexander Desplat e uma ambientação que é muitas vezes é sufocante.
O que torna o quesito técnico do longa um fator bastante crucial para funcionamento da trama, que na maior parte do tempo se passa dentro casa dos Charles, funcionando basicamente como uma personagem. Malcolm mesmo em seu primeiro trabalho como diretor mostra apuro técnico ao conseguir através da edição magnífica de Leslie Jones trazer flashbacks com cortes secos que são bem conduzidos deixando a narrativa ainda mais intrigante guiando o público a um final potente.

Por tudo que foi falado, “Piano de Família” é um filme incrível, que fala sobre legado e como isto reverbera no presente. Talvez não seja para todos os públicos, porém é uma trama riquíssima principalmente para o público negro dos EUA, mas se torna universal para as comunidades negras espalhadas pelo mundo na forma como resgata a ancestralidade que liga gerações através de lutas, perdas e sobrevivência. E o texto se torna ainda mais atemporal para o público geral quando os conflitos de família se mostram embates de personalidades diferentes que no final das contas acabam unindo todos pelo maior sentimento de todos, o amor.
O longa é bem dirigido, talvez não tenha um ritmo muito fluído no começo, mas o tom acaba encontrando seu caminho quando privilegia as atuações de John David Washington e principalmente Danielle Deadwyler transformando a narrativa num turbilhão de emoções que com certeza deve surpreender. Regado a muita espiritualidade e racialidade numa trama sobre exorcizar medos e seguir em frente mostrando que é possível fazer cinema de qualidade, mesmo num filme feito para streaming.
Recomendação: Assista a entrevista com elenco após o filme, são 23 minutos de duração falando sobre o legado de August Wilson e refletindo sobre os temas abordados no longa.
Gostou? Veja o trailer e comente abaixo se já assistiu ao filme.


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