O retorno à Cidade de Deus! Após quase 22 anos, a 02 Filmes traz Buscapé e companhia de volta na continuação de um dos maiores sucessos do cinema nacional, agora no formato de seriado se apoiando na nostalgia para atrair os fãs do longa original.

Quando escrevi sobre o longa Cidade de Deus na Coluna Nostalgia Preta (aqui), citei que a produção sucesso no Brasil, não perdeu qualidade nenhuma após vinte anos de lançamento. Um filme que fala sobre a construção e a realidade nua e crua de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, que é nada mais do que uma crônica urbana muito bem estruturada e dirigida que ganha o público por contar a história do surgimento de uma comunidade trazendo seus cidadãos para centro da narrativa.
Após algumas décadas, a HBO Brasil em parceria com a Max e 02 Filmes, continua a história dos personagens que viraram mania nacional, agora em forma de seriado em “Cidade de Deus: A Luta Não Para” (City of God: The Fight Rages On, 2024- ), com a trama se passando vinte anos depois com foco ainda em Buscapé (Alexandre Rodrigues), agora Wilson, um respeitado jornalista que continua acompanhando a realidade de Cidade de Deus, sendo os olhos jornalísticos de uma comunidade que ainda sofre com a violência e conflitos urbanos.
O mais difícil desta continuação criada por Sérgio Machado que ainda teve apoio dos roteiristas Armando Praça, Renata Di Carmo, Estevão Ribeiro e Rodrigo Felha, era sair do campo baseado em fatos do filme dirigido por Fernando Meirelles baseado na obra de Paulo Lins, e entrar no campo ficcional criando uma trama que seguisse os eventos estabelecidos anteriormente trazendo a trama para o presente num Brasil que ainda possui problemas sócio econômicos e não sabe lidar com a realidade de suas favelas.

A série dirigida por Ally Muritiba (Cangaço Novo) é cuidadosa o suficiente para se apoiar na nostalgia e esperta o bastante familiarizar seu público fazendo a transição entre passado e presente, com flashbacks pontuais. Quando assistimos ao piloto (1×01), passamos quase trinta minutos conhecendo o futuro de personagens do filme original como Buscapé, Berenice (Roberta Rodrigues), Cinthia (Sabrina Rosa), Bradock (Thiago Martins) e Barbantinho (Edson Oliveira), dentre outros.
Assim como a introdução de novos personagens, como o cabeça do crime atual da favela, Curió (Marcos Palmeiras), o novo namorado de Berenice, PQD (Demétrio Nascimento Alves), Jerusa (Andréia Horta) namorada de Braddock, a jornalista Lígia (Eli Ferreira), a filha de Buscapé, Leka (Luellem De Castro), dentre outros personagens que ajudam a dar corpo a uma trama que demora um pouco para criar casca, mas vai melhorando no decorrer do tempo.
Enquanto o primeiro episódio serve como uma grande introdução, a trama de “Cidade de Deus: A Luta Não Para” só começa mesmo com saída de Bradock da prisão e sua ânsia por reconquistar seu espaço no comando da “Boca dos Apês” comandada por Curió, entrando em um conflito que se estende por boa parte da temporada.

Talvez o mais difícil para seriado seja sair da sombra do brilhantismo do filme de 2002, ganhando um caminho próprio. Veja bem, a linha narrativa adotada por Sérgio Machado ao seus roteiristas é bem feita, com um conflito central na comunidade e uma trama política correndo por fora, com vários arcos e tramas secundárias rolando com foco primariamente nos personagens da Cidade de Deus.
A série começa a ganhar ritmo nos episódios 1×02 e 1×03, que passa a movimentar os arcos, mesmo que ainda tenha dificuldade de equilibrar entre o gênero policial e o drama, sem que isso torne o seriado um poço de clichê no gênero sendo apenas uma no meio de tantas como “Impuros”, “Sintonia” e “Dom”, que podemos citar como exemplo de sucesso atual que seguem a mesma linha da série protagonizada por Buscapé.
Inclusive o jornalista ainda é o centro da trama, continuando sua narração em off muito bem vinda e resgatando o talento de Alexandre Rodrigues, que teve pouco sucesso fora dos holofotes de Cidade de Deus, mas retorna aqui melhor que nunca como um profissional que sente o peso de mostrar a realidade onde vive, mas ao mesmo tempo precisa lidar com senso de responsabilidade ao vender as fotos dos conflitos que ocorrem na comunidade, além é claro de tentar resgatar a relação com a filha e cuidar da mãe.

O melhor de “Cidade de Deus: A Luta Não Para” é a forma como consegue enriquecer seus personagens e não focar apenas na violência urbana que continua sendo um problema recorrente na Cidade de Deus e é mostrada de forma bastante crua. A verdade é que a série ganha pontos por não esquecer o principal fator que fez o filme de Meirelles um sucesso, e não é o conflito entre Zé Pequeno e Mané Galinha, mas sim os cidadãos inocentes em busca de uma vida melhor que vivem no meio dessa guerra entre polícia, traficantes e agora milícias.
É neste ponto que personagens como Barbantinho (melhor amigo de Buscapé), Berenice e Cinthia ganham espaço, por servirem de voz de uma comunidade que clama por paz e funcionam como mediadores para que bandidos como Curió e Bradock acalmem os ânimos antes que a comunidade pague pelo eminente conflito que vai se formando.
A verdade é que a narrativa funciona como uma bomba relógio que explode no ótimo episódio 1×03, sendo repercutido no também muito bom episódio 1×04, com ascensão de Bradock no seio da comunidade como um novo chefe do tráfico que torna a vida dos cidadãos do lugar um verdadeiro inferno.

Em termos de produção, a série não tem muitos pontos negativos, na verdade em termos de direção e fotografia, é tudo muito bem feito. As atuações são boas na maior parte do elenco, mesmo aquelas mais caricatas de alguns coadjuvantes. O roteiro demora um pouco para encontrar seu caminho, mas nitidamente está numa crescente principalmente nos três últimos episódios, onde as tramas se cruzam de uma forma bastante eficiente.
Pessoalmente, o melhor desta obra, é a forma como atualiza o texto de uma forma soar mais crítico na questão dos conflitos armados em comunidade, além da tratativa da polícia que considera todos os cidadãos bandidos. A verdade é que a série escancara um lado obscuro do poder público que é corrupto e falha em punir quem merece com vidas inocentes sendo ceifadas no caminho, normalmente as vítimas são pessoas pretas, pobres e faveladas.
A série não para por aí, botando o dedo na ferida e usando isso como força motriz para mostrar que “Cidade de Deus: A Luta Não Para” consegue ganhar mitologia própria numa narrativa que só fica melhor. Os dois últimos episódios (1×05 e 1×06) possuem uma carga emocional muito boa e um ritmo que consolida uma primeira temporada com poucas falhas e muito potencial, principalmente por trazer ótimos destaques no elenco como Roberta Rodrigues, Thiago Martins e Andreia Horta.

De uma forma geral, “Cidade de Deus: A Luta Não Para” é uma boa série, que ganha pontos por saber resgatar a nostalgia do passado, mantendo elementos que deram certo, mas criando novas tramas que ajudam ampliar as reflexões sobre a realidade urbana das favelas e reviver o debate sobre conflitos armados em regiões de vulnerabilidade em comunidades cariocas. Com uma produção caprichada e muito potencial, a série vale cada segundo investido, não só se você gostou do filme “Cidade de Deus”, mas também se você gosta de entretenimento de qualidade. Aqui o seriado oferece os dois e deixa um gostinho de quero mais com ganchos eletrizantes. Que venha a segunda temporada!
Gostou? Veja o trailer abaixo e se já assistiu, comente sobre achou nos comentários.

