O segundo longa de Jordan Peele é um terror que choca pela violência, mas é inteligente em trazer reflexões numa narrativa que causa estranheza, mas tem muito a dizer.

O que define o ser humano? É uma pergunta simples, porém cheia por menores que acabam por nos fazer pensar até onde vai índole humana e como acontecimentos ajudam a tecer nossa personalidade durante nosso tempo de vida. Digo isso porque o segundo filme da coluna “Trilogia Peele” traz uma análise interessante sobre o lado bom e mal da humanidade e como isso é uma mera questão de perspectiva e ponto de vista.
A história do longa “Nós” (Us, 2019) é bastante simples, uma família negra vai passar férias na praia e acaba se deparando com acontecimentos estranhos que levam a encontrarem versões bizarras deles mesmos. Escrito e dirigido novamente pelo próprio Jordan Peele, temos uma narrativa completamente diferente da montanha russa de cunho social que foi “Corra!”. Com uma tensão maior e um suspense mais intenso, esta narrativa surpreende por conseguir manter uma tensão quase que constante.
Aqui também é onde começa a aparecer as marcas de Peele como diretor, mais uma vez privilegiando atuações negras no centro da história, consegue fazer um filme de terror que tem seus momentos de susto, mas também sabe chocar com reviravoltas que não param de acontecer à medida que os “outros” personagens aparecem na trama deixando expectador na ponta do acento.

É importante notar que “Nós” é um filme de detalhes, existe diversas alegorias na história que parecem confusas no seu primeiro ato, mas acabam se encaixando durante seu desenvolvimento. O mais interessante é que o roteiro nos deixa interpretar a história e só dá mais informações da metade para o final, ainda assim em alguns pontos ela soa confusa quando tentamos enxergar o todo, mas nas entrelinhas está bem claro o foco do diretor em trazer uma interpretação bastante sombria da aura humana.
O legal aqui é perceber como a história é movida por atuações e são estas que torna o longa algo único e intrigante de acompanhar. A escolha do elenco para personagens complexos diz muito sobre como você vai ou não investir seu tempo na trama. A família Wilson tem a matriarca Adelaide Wilson (Lupita Nyong’o) e seu marido Gabe (Winston Duke), além de seus dois filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e o caçula Jason (Evan Alex), uma típica família norte americana que se vê de encontro ao desconhecido ao se deparem com a versão mais bizarra deles mesmo.
O primeiro ato constrói toda uma atmosfera macabra e muda o tom para algo mais pesado e aterrorizante quando uma versão alternativa da família Wilson aparece trazendo pânico e violência para família original. O roteiro é esperto o suficiente para não entregar tudo de imediato, a história ganha em urgência quando o filme se torna uma narrativa de sobrevivência quando os “sombrios” começam a aparecer para tomar o lugar de seus respectivos originais.

Como citei anteriormente a escolha do elenco é algo crucial para o funcionamento da trama, sendo que a espinha dorsal de “Nós” tem nome e sobrenome, Lupita Nyong’o (12 Anos de Escravidão), a atriz apresenta seu melhor papel na carreira ao interpreta Adelaide e sua outra versão, aqui vemos uma atuação primorosa de duas personagens dúbias, a primeira parece guardar algum mistério, enquanto a segunda está em busca de uma espécie de vingança. Nyong’o simplesmente devora tudo em tela e desaparece dentro dessas personagens, seja no aspecto físico, seja na mudança no tom de voz, seja na forma como interpreta de forma única duas personalidades completamente distintas.
Outros destaques aqui são: Winston Duke (Pantera Negra) no papel de Gabe, Shahadi Wright Joseph (Eles) no papel de Zora e até mesmo o pequeno Evan Alex (Empire), esse trio também manda muito bem em suas interpretações, algo que o roteiro exige, tanto que participações de Elizabeth Moss (O Homem Invisível), Yahya Abdul-Mateen II (A Lenda de Candyman) e Anna Diop (Titãs) também ajudam elevar a história e reforçar um elenco que se destaca mesmo com pouco tempo de tela.
O segundo ato de “Nós” é algo mais direto e talvez entregue bastante informação ao revelar a natureza do surgimento desses “clones”, algo que Peele espertamente vai inserindo dicas no começo da narrativa para colher os frutos quando chegamos ao momento de revelações. Talvez falte ao filme um ar de novidade, mas as tentativas da direção em proporcionar emoções ao expectador é bem sucedida a partir do momento o diretor consegue dosar bem sustos e tensão.

Quando se tem um filme como este, é bacana perceber as diversas referências e interpretações que podemos de ter da história. A primeira é a de como Peele trabalha o medo humano do desconhecido e como isso é usado para criar uma atmosfera de insegurança e ameaça constante. Algo que se pode interpretar também é como os “sombrios” ou “duplos” fazem a alusão ao “Mito da Caverna” de Platão e como essa metáfora é utilizada na história nos dando uma noção dos conceitos sobre escuridão e ignorância, luz e conhecimento, além do mais importante, a distinção entre aparência e realidade.
Tudo isto é utilizado de forma magistral na história que alimenta a surpreendente revelação no terceiro ato que faz a tudo aquilo que a narrativa construiu até então. Talvez por “Corra!” ter criado uma expectativa muito grande, “Nós” tenha sido um pouco exigido demais, mas o filme não perde em brilhantismo, mas ganha em complexidade a cada vez que você revê o filme. A questão racial ainda está embutida de forma mais singela aqui, mas desta vez Peele a engloba na sua interpretação da cultura de massa e como a classe de cima trata aqueles que estão por baixos (relação humanos e clones).
De uma forma mais geral, o segundo longa da carreira de Jordan Peele, é uma história excelente que merece ser apreciada de tempos em tempos. Aqui o diretor mostra uma qualidade sagaz e uma expertise onde concluímos que o mesmo não é apenas um cineasta de um sucesso só. Em “Nós” temos um filme de terror sufocante que se mostra bizarro e sanguinolento que se utiliza de várias metáforas para construir um caldeirão caótico elevado por atuações excelentes principalmente de Lupita Nyong’o, que carrega a história de forma impecável numa trama que tem tudo para ser tornar um clássico para próximas gerações.
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Leia o texto do terceiro filme da coluna “Trilogia Peele”, aqui.
Leia também o texto do primeiro filme da coluna, aqui.

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