O primeiro filme da Antologia Small Axe traz uma trama de julgamento intenso que expõe um sistema judicial viciado e racista em um Reino Unido dos anos 70.

Steve McQueen (12 Anos de Escravidão) é um dos meus diretores favoritos, seus filmes tem um estilo provocador que privilegia seus atores em cena e ainda traz análises impactantes sobre seus enredos criando uma complexidade bastante surpreendente em thrillers de suspense e drama que mostram sua versatilidade atrás das câmeras. Desta vez o diretor foi além ao criar uma antologia sobre a verdadeira experiência de ser negro na Terra da Rainha se aprofundando nas questões raciais de uma Inglaterra na década de 70.
A antologia “Small Axe”, é como McQueen decidiu chamar seu conjunto de filmes feitos para TV produzido pela BBC One em parceria com Amazon Prime. Aqui no Brasil chegou como formato de série no Globoplay, porém minhas críticas serão realizadas tratando essas obras como filmes e não como episódios seriais. A primeira obra que vou falar é sobre o drama “Os Nove de Mangrove” (Small Axe: Mangrove, 2020), que conta a história das nove pessoas negras presas após participarem dos protestos e confrontarem policiais londrinos no ano de 1970.
Este acontecimento ficou famoso na época não só pela forma como essas pessoas foram presas, mas pela forma como foram julgadas. A direção de McQueen aqui se mostra diferente de suas obras anteriores, conseguindo capturar a essência de uma comunidade negra imigrante regada a muita cultura e reggae tentando se encaixar numa sociedade britânica conservadora e muitas vezes avessa ao crescimento desse núcleo que se formava causando uma espécie de segregação nas regiões periféricas londrinas.

A trama é centrada neste restaurante chamado Mangrove, onde seu dono Frank Crichlow (Shaun Parkes), um imigrante negro que veio do país “Trinidad e Tobago” junto outros tantos de sua comunidade tentar a vida na Inglaterra, porém ao tentar se estabelecer seu negócio em Nothing Hill, virou alvo de policiais locais incluindo o carrasco policial Frank Pulley (Sam Spruell) que acusa o estabelecimento dirigido por Frank de acobertar vendas de drogas, apostadores e prostitutas, levando a várias batidas no lugar pela polícia de forma brutal e truculenta.
Este estopim no restaurante levou a reação imediata da comunidade negra que realizou um protesto contra a polícia pelas ruas de Nothing Hill levando a uma forte repressão policial que em contrapartida promoveu uma retaliação que resultou na prisão do próprio Frank Crichlow, da ativista britânica Barbara Beese (Rochenda Sandall), a líder dos Panteras Negras e trinidadiano Altheia Jones-LeCointe (Letitia Wright), o ativista trinidadiano Darcus Howe (Malachi Kirby), Rhodan Gordon (Nathaniel Martello-White), Anthony Carlisle Innis (Darren Braithwaite), Rothwell Kentish (Richie Campbell), Rupert Boyce (Duane Facey-Peason) e Godfrey Millett (Jumayn Hunter) formando os nove de Mangrove, todos acusados de amotinação e desordem.
Este estopim no restaurante levou a reação imediata da comunidade negra que realizou um protesto contra a polícia pelas ruas de Nothing Hill levando a uma forte repressão policial que O longa de quase duas horas e dez minutos de duração é um filme que intercala drama tradicional e drama de tribunal, sendo que esta segunda parte entra na metade final da narrativa. Durante todo o primeiro ato, se vê que o roteiro escrito pelo próprio McQueen e co-escrito por Alastair Siddons (Tomb Raider: A Origem) situa o expectador bem se apoiando no apelo cultural dos personagens e como o restaurante tradicional virou uma nostalgia para os imigrantes daquela comunidade e posteriormente se tornou também um ponto de resistência para luta por mais direitos e igualdade dos negros da região.

Aqui em “Os Noves de Mangrove”, vemos uma história que mostra acima de tudo as injustiças e uma sociedade britânica incapaz de aceitar a presença de pessoas negras em seu meio. A história é centrada em Frank para ser o fio condutor da resistência preta daquela época, mas várias figuras negras de pura personalidade que vão surgindo ao longo do filme tomando a luta prá si e expondo o racismo da polícia, a corrupção do sistema judiciário britânico e a falta de uma lei mais justa para pessoas que imigram de seus países de origem para viver naquelas localidades.
A produção do filme é impecável, a trilha sonora potencializa ainda mais o caldeirão cultural de Nothing Hill, principalmente na cena de uma comemoração típica das pessoas de Trindad e Tobago no meio da rua mostrando a personalidade forte e ancestralidade que o filme traz para seus personagens. A fotografia é magnífica e a direção de McQueen é outro ponto forte que merece bastante elogio, não só por manter o ritmo do filme bastante regular na maior parte do tempo, mas por conseguir trazer emoção genuína principalmente nas cenas do julgamento dos nove acusados na segunda metade do filme.
A verdade é que “Os Nove de Mangrove” ganham em tensão, emoção e intensidade nas cenas em que os nove acusados começam a ser julgados pelos seus supostos crimes. É aqui que a narrativa cresce como drama e faz com que realmente possamos entender toda a injustiça que esses personagens estão sofrendo, sendo tratados com completo descaso e mostrando o quão sem critérios a justiça britânica se apresenta em relação a população negra que reside no país, revelando que naquela época as questões raciais eram praticamente ignoradas e tinham apenas um lado, o lado branco da lei.

É neste ponto também que o elenco começa a ter vários destaques, posso mencionar aqui três que gostei bastante, primeiro Shaun Parkes (O Retorno da Múmia), ótimo no papel de Frank e uma pessoa que apesar de resistir aos abusos da polícia e a destruição de seu restaurante e diversas ocasiões, se vê numa incógnita em resistir, ou simplesmente desistir ao ver que pode ser preso por um longo tempo devido as acusações que sofreu, aqui Parkes entrega uma atuação muito boa, cheia de emoção e intensidade.
Outro destaque para vai para Letitia Wright (Pantera Negra) no papel da líder dos Panteras Negras, sua Athleia não esmorece mesmo enfrentando um julgamento cheio de falhas e injustiças, seu discurso em um determinado momento é excelente, mostrando que Wright é uma atriz talentosa e que está pronta para estrelato. O último destaque vai para Malachi Kirby (Roots), seu personagem Darcus Howe tem um dos monólogos mais simbólicos e espetaculares de todo o filme, representando exatamente como é a experiência de ser negro numa sociedade britânica que não os reconhece como indivíduos com os mesmos direitos do restante da população, aqui Howe entrega uma atuação poderosa e marcante.
De uma forma geral, “Os Nove de Mangrove” é um excelente filme, muito bem filmado, bastante envolvente, que talvez canse pela sua duração, afinal não tem pressa em contar sua história, mas o investimento vale a pena e pode resultar numa experiência bastante compensadora em um longa que traz emoção, críticas pontuais e uma biografia poderosa de nove pessoas que foram julgadas injustamente, mas que deixaram seus nomes marcados na história ao serem as primeiras a confrontarem e exporem a forma como sistema britânico falha ao julgar, proteger e garantir o direito das pessoas negras, além de demonstrar o preconceito racial forte da força policial diante das comunidades periféricas.
Com uma ambientação impecável dos anos 70 e uma produção que exala qualidade, boas atuações, bons diálogos e principalmente uma ótima direção de Steve McQueen, este filme é uma das grandes narrativas de 2020 e também um dos grandes filmes de julgamento dos últimos anos, sabendo intercalar um bom drama com forte apelo emocional que fica ainda mais impactante quando se descobre que a narrativa é baseada em fatos.
“Com uma direção apurada de Steve McQueen e um elenco negro afiado liderado por Letitia Wright, “Os Nove de Mangrove” é um drama magnífico e arrebatador, muito bem escrito e que expõe os fortes preconceitos raciais na sociedade britânica num filme que se inspira em questões sociais fortes e entrega uma obra que soa atemporal, mesmo se passando nos anos 70 e que vale cada segundo principalmente pelos diversos momentos dramáticos que proporciona.” –
Certificado Excelência Negra
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3 comentários sobre ““Small Axe: Os Nove de Mangrove” – Crítica”