“The Underground Railroad – Os Caminhos da Liberdade” – Minissérie – Crítica

Forte, triste e melancólica, esta minissérie de drama traz os horrores da escravidão e quebra o véu da realidade para trazer uma síntese de um EUA racista e cruel pelas mãos do cineasta Barry Jenkins.

Fonte: Amazon Studios

É difícil entender o presente sem olhar para o passado. Esta frase pode soar piegas, mas é a pura verdade, as vezes para explicar certos fenômenos, ações e atitudes da sociedade no presente, é preciso saber a história para analisar onde partiu os erros e porque isso ainda reflete no presente. Digo tudo isso para falar da nova minissérie da Amazon Prime adaptação do livro de Colson Whitehead, “The Underground Railroad – Os Caminhos da Liberdade”, drama que se passa no período da escravidão e traz uma história com elementos bastante simbólicos e marcantes que nos faz refletir sobre temática do preconceito racial.

Começo esta crítica dizendo que esta não é uma minissérie fácil de assistir, a temática é pesada, as cenas são fortes e as imagens são tão chocantes e brutais que acabam ficando na memória de quem assiste, desta forma já vá com aviso do que esperar. Ainda assim, esta obra criada e dirigida por Barry Jenkins (Moonlight) é mais do que apenas cenas chocantes e assustadoras que causam revolta no expectador tamanha a indignação resultado de uma crueldade humana sem limites, temos aqui uma análise bastante imersiva que mostra um lado bastante obscuro da história americana.

A minissérie “The Underground Railroad” fala sobre escravidão, assim como várias outras séries e filmes já fizeram, porém a narrativa que acompanha a jornada de Cora (Thuso Mbedu) para escapar da fazenda na Geórgia através de uma ferrovia subterrânea usada por escravos para fugir de seus impiedosos e cruéis senhores, vai além ao trazer não só um profundo retrato deste período, mas uma análise precisa de como o racismo e o preconceito se alastraram por um EUA branco incapaz de aceitar uma convivência pacifica com pessoas pretas.

Fonte: Amazon Studios

A trama traz muito dos aspectos desta época e se utiliza de momentos lúdicos para ampliar suas discussões e acentua seu lado mais “fantástico” para servir de válvula de escape para seus personagens em meio aos horrores dessa vida de servidão. Ao contrário da primeira temporada de “Eles” (também da Amazon), aqui se nota um cuidado para tratar desses temas delicados, sem que isso possa soar gratuito para seu público. É bastante notório ver o esforço de Barry Jenkins e seus diversos roteiristas em passar uma mensagem e uma reflexão em cada passo da penosa jornada de Cora em busca da sua liberdade.

A narrativa começa a se moldar no piloto, o “Capítulo 1: Georgia” (1×01) traz uma série que não tem pressa de se desenvolver aos poucos, partindo de cenas futuras e voltando ao início desta trajetória com Cora e Caesar (Aaron Pierre) na plantação em uma fazenda em Geórgia tramando de fugir do lugar pegando a tal estrada subterrânea. O texto da minissérie consegue estabelecer rápido aquele ambiente mostrando o cotidiano da fazenda e nos chocando com cenas fortes de como os escravos eram tratados por Randall, dono do lugar.

De imediato o piloto começa a tecer de forma bastante direta o preconceito e o racismo dos brancos em relação aos negros, mostrando como exploram a mão de obra deles ao extremo nos vastos campos de algodão ao mesmo tempo que se incomodam com tudo que eles fazem, procurando nos pequenos motivos alguma forma para puni-los gratuitamente. Aqui encontramos uma Cora, arisca, pesarosa e machucada pelo tempo, ao ser abandonada pela mãe Mabel (Sheila Atim) naquele lugar tenebroso, ela vê em Caesar a única forma de escapar das atrocidades daquele regime opressor.

É importante perceber que Jenkins tenta a todo momento intercalar belas cenas e outros momentos de calmaria dos escravos cantando e dançando em contra ponto a tudo que sofrem e testemunham na fazenda. O roteiro é carregado de nuances, que vão ficando mais complexas à medida que você vai assistindo a série. Nos episódios “Capítulo 2: Carolina do Sul” (1×02) e “Capítulo 3: Carolina do Norte”(1×03) a série começa a tomar mais corpo e a expor tudo aquilo que precisa para mostrar que a jornada de Cora e Caesar não será fácil quando se deparam com a comunidade de Griffin onde percebem que um lugar aparentemente pacífico e acolhedor é outro tipo de cativeiro, agora usado para esterilizar corpos negros e exercer ainda mais controle sobre eles.

Fonte: Amazon Studios

Cada episódio da série traz uma crítica explicita do tipo de racismo e preconceito que cresceram de forma destrutiva nas entranhas da sociedade norte americana daquela época, se o segundo episódio mostra esta noção de controle sobre corpos pretos, o terceiro episódio é ainda mais assustador ao mostrar que até mesmo os brancos que não são favor das atrocidades da escravidão, não sabem lidar com essa “culpa branca” em relação a todos os horrores infligidos nos diversos estados da federação americana aos negros, deixando que a fé os guiem mostrando um lado doentio da fé conservadora nos primeiros movimentos do que futuramente se tornaria uma onda neopentecostal.

A espinhal dorsal da minissérie se dá na relação complexa entre a fugitiva Cora e seus captores Arnold Ridgeway (Joel Edgerton) e seu aliado, o pequeno Homer (Chase Dillon), com a primeira correndo atrás da sua liberdade e os outros dois a caçando por todos os lugares possíveis. Ridgeway é a verdadeira face de um EUA branco que acha que toda raça diferente da dele precisa ser subjugada, domada ou exterminada, tudo isso ganha contornos dramáticos na sua relação com o pai no episódio que foca em sua vida no “Capítulo 4: O Grande Espírito” (1×04), talvez o episódio menos interessante da série, mas não menos importante, onde vemos como a sociedade americana perpetua preconceitos e ódio gerando seus próprios monstros.

A série ganha aumenta sua intensidade nos decisivos episódios “Capítulo 5: Tennessee – Exodus” (1×05) e “Capítulo 6: Tennessee – Provérbios” (1×06) onde Barry Jenkins diminui o ritmo da sua narrativa para expor a solidão do homem negro desacreditado na pele do personagem Jasper, num dos episódios mais tristes e enfáticos da minissérie (a verdadeira síntese da carne mais barata do mercado), ao mesmo tempo que começa a direcionar sua sofrida e exausta protagonista a seguir os primeiros passos para chegar na luz no final do túnel.

Fonte: Amazon Studios

Falando em luz, a estrada subterrânea funciona aqui como uma grande metáfora que a direção de Jenkins consegue de forma brilhante transitar entre o real e o imaginário em sequências que não ficam claro se o lugar realmente existe ou não, deixando o expectador refletir em cima das peças que o próprio roteiro vai colocando no caminho para que o quebra cabeça seja montado naturalmente, mas o mistério de como ela surgiu e para onde ela vai fica subtendido na narrativa como é evidenciado no episódio “Capítulo 7: Fanny Briggs”(1×07), inclusive Cora funciona aqui como elo mais forte sobre esse misterioso lugar e cabe ao expectador entender através da jornada da personagem os mecanismos desse porto seguro para escravos, seja ele uma vertigem de uma mente que precisa se libertar, ou um caminho real que apenas pessoas negras podem encontrar.

É neste ponto que “The Underground Railroad” transcende como série, nada aqui é entregue de maneira simplória, tudo é muito bem pensado para que o expectador ganhe um senso crítico, ainda que seja por meio choque de uma realidade tão dura que Barry Jenkins não faz questão de negar, mas de expor através de cenas fortes, ou diálogos pesadíssimos, tão incômodos que é impossível que você não sinta o impacto das palavras após terminar uma cena ou até mesmo de assistir os episódios.

O respiro da série vem através do episódio “Capítulo 8: Outono em Indiana” (1×08), onde Cora se vê em um lugar próspero e digno na fazenda Valentine. Nos episódios anteriores, o seriado expõe as atrocidades do racismo, do preconceito e a consequência disso, ao mesmo tempo que mostra essa busca incessante dos personagens negros pela liberdade de alguma forma, seja ela vindo pelo caminho físico, ou metafísico, onde podem encontrar certo alento. Este episódio é interessante, pois começa a moldar um futuro onde os negros são inseridos aos poucos na sociedade, tudo isso através da força de seu trabalho encontrando inclusive pessoas brancas abertas ao diálogo.

Fonte: Amazon Studios

No entanto, a série não poupa de mostrar que para os negros, a liberdade é um pensamento constante, mas também pode ser uma grande ilusão. As várias faces do racismo mostrada na série, evolui de acordo com episódios e ganha mais complexidade à medida que a sociedade mostra sinais de mudança. O texto de Jenkins e seus roteiristas mostra que a luta simplesmente não termina, mas ganha novos contornos à medida que as pessoas pretas começam a ter mais direitos e independência na sociedade americana.

O apoteótico episódio “Capítulo 9: Inverno em Indiana” (1×09) é a culminação de tudo aquilo que a série construiu e um pouco mais, mostrando um controle narrativo como poucas produções tiveram nesses últimos anos. Trazendo dois monólogos poderosos de lados opostos de uma mesma luta, enquanto expõe em seus últimos minutos cenas de verdadeiro terror em uma sequência de batalha que mostra o apuro técnico de Barry Jenkins em expor a face da branquitude americana na sua forma mais cruel e assombrosa na culminação de uma narrativa que não poupa sua protagonista de um final triste ainda que satisfatório se é que podemos dizer desta forma.

A minissérie só funciona desta for coesa, muito por conta da atuação brilhante de Thuso Mbedu no papel de Cora, a novata devora cada cena, cada episódio de uma forma assombrosa, mostrando tantas vertentes de uma personagem ferida pelo tempo, abalada pelas perdas de amigos e aliados, mas que nunca esmorece, mesmo diante da morte certa em vários momentos, a cada novo ciclo de horror, ela encontra forças para seguir em frente. Thuso em primeiro papel de destaque na carreira atua de forma exemplar, com expressões corporais e faciais pontuais marcantes em montes onde não se tem uma linha de diálogo, e quando a personagem precisa dizer o que pensa, a atriz brilha ainda mais numa atuação tão emblemática que será difícil ser ignorada no período das premiações.

Fonte: Amazon Studios

O elenco coadjuvante não fica atrás e é bastante comprometido em entregar o seu melhor em cena, Joel Edgerton (O Presente) está ótimo interpretando o odioso Arnold Ridgeway, outro destaque vai para o pequeno Chase Dillon (Little America) no papel de Homer, sua relação com Ridgeway é uma das coisas mais complexas da narrativa, quase como de pai e filho, mas ainda separada pela cor evidenciando uma cumplicidade quase que doentia, o rastro de sangue deixado por esses dois deixa a trama ainda mais tensa e revoltante para quem assiste. Aaron Pierre (Krypton)  no papel de Caesar também vale a menção, assim como Sheila Atim (Os Irregulares de Baker Street) no forte papel de Mabel, mãe de Cora.

No lado técnico, “The Underground Railroad” é uma obra prima, a fotografia de James Laxton é um exercício de puro cinema variando de acordo com episódios e com o ambiente onde elas são retratadas, mostrando uma gama de possibilidades de um visual que não só contribui para contar a história, mas ressalta ainda mais os detalhes das cenas em frames que poderiam facilmente virar quadros de exposição. A trilha sonora de Nicholas Britell é um assombro, trazendo acordes que poderiam ser usados em filmes de terror, ao mesmo tempo que suaviza nos momentos mais íntimos, um trabalho primoroso que só contribui para deixar a obra ainda mais impecável.

A edição, o design de produção, os figurinos, direção de arte e a construção de cenários valem a menção pelo afinco desta equipe técnica em deixar tudo de forma que beira a perfeição. Tudo no seriado é acima da média e Barry Jenkins é o maestro perfeito para fazer tudo funcionar a contento com uma direção que sabe o que quer, dando espaço para os atores trazerem seu melhor em cena, ao mesmo tempo que dirige de uma forma precisa em tomadas que só deixam a obra ainda mais emblemática, bela e melancólica mostrando que a transição de cinema para o formato de seriado, só deixou seu talento ainda mais apurado na forma como contar esta história.

Fonte: Amazon Studios

De uma forma geral, “The Underground Railroad – Os Caminhos da Liberdade” é uma minissérie incrível, mas que requer paciência, atenção e comprometimento, a narrativa entrega uma síntese de um EUA banhado a sangue de corpos negros em um período tenebroso (não muito diferente do nosso aqui no Brasil) das piores formas possíveis em uma obra que expõe todos os erros históricos cometidos e todas as vertentes que mostram o porquê desta cicatriz ainda não ter se curado depois de centenas de anos devido a repetição do ciclo de ódio.

O último episódio “Capítulo 10: Mabel” (1×10) funciona mais como um epílogo e um fechamento de ciclo para Mabel e Cora, mãe e filha, com jornadas distintas que jamais se encontram, mas intimamente ligadas através do tempo carregando o peso do que é ser uma mulher preta numa sociedade opressora e machista, a base da pirâmide, cuidando e carregando o peso do mundo em suas costas, tudo aquilo que foi mostrado na série é amplificado quando compreendemos a jornada dessas personagens, com passado, presente e futuro misturado numa jornada cheia de incertezas, feridas e arrependimentos na busca de sanar seus assuntos inacabados para poder seguir em frente.

Sendo assim esta minissérie é uma das mais necessárias do ano, não só pela forma como é contada, mas pelo assunto abordado e pela forma como ele é abordado, levando seu público a refletir e a rever seus conceitos, se você é branco, “ver, ouvir e escutar e agir” é um começo, se você é negro, “ver, lutar e agir” é algo que deve ser constante, mas no final das contas este drama mostra que é preciso olhar para o passado, para não só evitar mais erros no presente, mas para que possamos não repeti-los e com isso moldar um novo futuro, sem dor, sofrimento e ódio.

“Nosso atestado de excelência negra vai para Barry Jenkins e sua capacidade de construir uma narrativa em dez episódios que entrega um drama forte e impecável que merece ser revisitado e estudado pelas próximas gerações. Com uma produção impecável e um texto excelente, amparados por uma atuação de tirar o fôlego de Thuso Mbedu, esta minissérie merece figurar no posto das grandes produções negras da década.”

Certificado Excelência Negra

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