“Eles” – 1° Temporada – Crítica

Pesada e violenta, esta nova produção da Amazon Prime é ambiciosa e bem atuada, mas perde a mão ao exagerar na tortura psicológica de corpos negros na tentativa de trazer uma crítica social relevante.

Fonte: Amazon Studios

Qual é o limite do entretenimento? Qual é o limite que uma narrativa, seja ela filme ou série, precisa chegar para transmitir sua mensagem? Fiquei questionando bastante isso na maior parte do tempo assistindo esta nova série em formato de antologia da Amazon Prime em parceria com a Sony Pictures Television denominada “Eles” (Them, 2021) que pesa a mão no terror, no suspense psicológico e na tortura de seus protagonistas para tentar entregar uma crítica social de cunho racial em um dos períodos mais tenebrosos da história dos EUA.

A série se passa em 1953 num período em meio a “Segunda Grande Migração” norte americana, onde famílias negras na busca de fugir da medida racistas e extremistas dos decretos de segregação de Jim Crow, saem do sul para tentar a vida em outros lugares dos EUA. A narrativa foca na história da família Emory, que sai da Carolina do Norte em busca de uma vida melhor em Los Angeles em uma vizinhança onde só vivem pessoas brancas. Após a chegada da família ao local, coisas estranhas e sobrenaturais começam acontecer testando a sanidade deles.

A trama segue duas linhas narrativas interessantes, a primeira acompanhando a história de uma família negra ocupando um espaço majoritariamente branco e tendo que lidar com preconceito e racismo explícitos de pessoas que não querem a presença deles no local. A segunda foca no lado do terror, pois quando a família se instala, começa a sentir que não estão sozinhos na casa, tendo que lidar com manifestações fantasmagóricas.

Fonte: Amazon Studios

A narrativa se passa durante os dez dias que família Emory viveu no local, esses dez dias são divididos em dez episódios que variam entre trinta e cinquenta minutos de duração. O roteiro escrito por Little Marvin (The Time Is Now) que também assina como showrunner, tenta equilibrar o terror social e racial vivido pela família, ao mesmo tempo em que se utiliza do terror sobrenatural para amplificar o escopo de sua história e trazer um pouco de mistério e suspense para o seriado.

Inicialmente “Eles” que também tem como produtora executiva Lena Waithe (Queen & Slim), entrega sim algo bastante intrigante já de início, seu piloto deixa o expectador querendo mais ao apresentar de uma forma bastante eficaz os membros da família Emory, composta pelo casal Livia “Lucky” Emory (Deborah Ayorinde) e Henry Emory (Ashley Thomas), além de suas filhas, Ruby Dee Emory (Shahadi Wright Joseph) e a pequena Gracie Emory (Melody Hurd). Uma família aparentemente normal, bonita e esperançosa, mas que aos poucos vai se mostrando cheia de traumas e fantasmas que os assombram desde a perda recente e dolorosa os fazendo mudar do local onde residiam anteriormente para tentar uma vida nova.

O piloto “Day 1” (1×01) se mostra bastante consistente não só pela qualidade da produção, mas pela capacidade da direção de Nelson Cragg (Ratched) de conseguir trazer um contexto de tensão, pela chegada dessa família negra a um local onde são tratados praticamente como criminosos por invadirem o espaço de uma comunidade liderada por Betty Wendell (Alison Pill), uma vizinha branca, maluca e racista que promete fazer um inferno da vida dos Emory por abalarem a harmonia de sua comunidade.

A série consegue mostrar a que veio também no terror, com cenas de puro “jumps scares” (aquelas cenas de sustos fáceis) que são muito bem executadas e capazes de deixar acordado a noite. Os episódios seguintes “Day 3” (1×02) e “Day 4” (1×03) começam a focar na rotina do quarteto tentando se adaptar à nova vida, com Henry enfrentando seu primeiro dia de trabalho como engenheiro de uma grande empresa, com Ruby indo à escola de brancos tendo que lidar com a rejeição, assim como foca em Lucky e na pequena Gracie tentando manter uma vida normal em casa.

Fonte: Amazon Studios

A narrativa não poupa o expectador dos horrores do racismo e do quão pesado ele era neste período, os Emory sofrem de todas as formas do jeito mais nocivo e vil possível. O roteiro até consegue equilibrar bem isso nos três primeiros episódios, utilizando o terror apenas em momentos pontuais sempre entregando um contexto que nas entrelinhas tem bastante referências a muitas histórias reais de atrocidades que realmente aconteceram nos EUA naquele período de forma puxar ganchos para possíveis revelações. A verdade é que a série é muito focada nos traumas da família e isso vai se intensificando episódio após episódio.

O ritmo de “Eles” é envolvendo, isso não se pode negar, tudo funciona de uma forma muito bem dosada, mas aos poucos você sente que a narrativa vai ficando muito pesada à medida que se encaminha para sua metade. As coisas começam a pesar mesmo a partir do episódio “Day 6” (1×04), quando a narrativa fica mais repetitiva utilizando-se dos mesmos recursos estabelecidos anteriormente e onde prá mim a série começa a sair dos eixos.

Vivemos numa sociedade que convive diariamente com violência, mortes e perdas, e tudo isso amplificou de uma maneira absurda quando a pandemia surgiu no começo do ano passado. No mundo do entretenimento, alguns tipos de violências em determinados gêneros são justificáveis dependendo da forma como a história é contada, mas quando ela se repete constantemente sem uma possível justificativa, ela se torna uma tortura mental para quem assiste.

O episódio 4 já tinha me chocado pela forma como a série pesava a mão nos traumas de Lucky, Henry, Ruby e Gracie, cada um a seu modo, lidando com um tipo de culpa diferente, com o luto, com a rejeição da sociedade, com a estrutura preconceituosa que os impedia de viver uma vida normal partilhando dos mesmos direitos de qualquer cidadão norte americano. Até aí eu entendo que a série queria tecer toda uma crítica e análise de terror social que faziam as pessoas brancas agirem como animais caçando e perseguindo pessoas pretas, além de mostrar como isso impactava na vida dessas pessoas.

Fonte: Amazon Studios

Meu problema, é quando isso se torna muito gratuito ao ponto de você não ter prazer no que está assistindo, apenas choque, revolta e indignação. O episódio “Covenant I” (1×05) que praticamente revela a verdade sobre o bebê mais novo dos Emorys, é umas das coisas mais impactantes, tristes e difíceis de assistir na TV este ano, precisa ter estômago forte para ver a violência gráfica do ataque desses ruralistas brancos a pequena fazenda da família deixando um rastro de morte e trauma.

Eu entendo o compromisso dos cineastas em trazerem algo autêntico na construção de um universo ou de uma abordagem que realmente cheguem próximo da realidade, mas precisava dessa violência toda para passar algum tipo de mensagem? Os EUA vivem a dor da perda de George Floyd e outras vidas negras que morreram de forma covarde por policiais brancos, corpos negros sofrem há décadas com hiperssexualização e violência nas periferias de várias cidades incluindo no Brasil, e um showrunner (que é negro, o que me deixou mais chocado) colocar uma família negra para sofrer torturas físicas e mentais por dez episódios é um pouco demais para qualquer pessoa que tem uma consciência que entretenimento não deve ser algo que seja canal para uma violência tão cruel.

É bom ressaltar, que minha indignação nada tem a ver com a forma como o elenco exerceu seu trabalho na série, porque as atuações aqui são muito boas e de uma entrega incrível dos atores. Gosto bastante de Deborah Ayorinde (Harriet) no papel de Livia “Lucky”, mulher forte, que mesmo sofrendo com a dor da perda, encontra forças para lidar com o sobrenatural e vizinhas racistas. Ashley Thomas (24 Horas: O Legado) está visceral no papel de patriarca da família Emory, uma pessoa inteligente, centrado, mas que não esconde os traumas do racismo internalizado que sofre por guardar toda a revolta com os brancos que tiraram a vida de uma pessoa que ele amava e que o impedem de ter uma carreira brilhante como engenheiro. Shahadi Wright Joseph (Nós) está muito bem no papel de Ruby (a cena da lata de tinta e depois no campo de futebol é muito triste), assim como Melody Hurd (Battle At Big Rock) no papel de Gracie. Outros destaques aqui são Alison Pill (Scott Pilgrim Contra o Mundo) no papel da vilã Betty Wendell e Christopher Heyerdahl (Togo) como o misterioso e assustador “Homem do Chapéu Preto”.

A série não diminui o ritmo de violência e tortura psicológica, os episódios “Day 7: Morning” (1×06), “Day 7: Night” (1×07) e “Day 9” (1×08) tentam dosar, mas apenas ampliam o escopo, porém agora trazendo o sobrenatural de forma mais explicita sobrepondo ao terror social, que ainda está bastante presente, mas agora dá lugar ao terror puro com sustos, aparições e revelações até bastante convincentes, mas não totalmente completas.

Fonte: Amazon Studios

É claro que “Eles” é uma série com uma produção muito boa que vai desde os figurinos e ambientação impecável, passando pela fotografia e direção excelentes, num trabalho bastante completo de atuação como citei anteriormente, mas fica claro que a série se perde por torturar demais seus personagens de tal forma que fica até difícil de assistir alguns episódios. Inclusive “Covenant II” (1×09) é um episódio em flashback em preto e branco assustador que consegue mostrar não só as origens de um racismo doentio que ainda mistura fanatismo religioso que abre espaço para um mal maior.

Por mais crítica que tenha em relação a este seriado, não tem como não dizer que a narrativa é ousada e provocadora, mas com certeza faltou sutileza e cuidado para não evidenciar um trauma negro tão pesado e tão doloroso que toca numa ferida que atualmente ainda não cicatrizou. Todo cineasta tem o direito de fazer um entretenimento que ele acha que vai transmitir algo para o público, mas quando essa ideia não é entregue a contento, deixa um gosto amargo na experiência, como é o caso desta trama.

A série é complexa quando mostra o racismo como forma de terror social, mas é simples quando foca no terror demoníaco, que no final das contas é inofensivo em menos assustador que um bando de vizinho maluco querendo linchar corpos negros. De uma forma geral, “Eles” é um caso de meio termo, não é ruim, porém longe de ser algo completamente satisfatório, ainda que tenha momentos de pura catarse no seu episódio final “Day 10” (1×10), mas não há como negar que a série te estimula a pensar até onde este tipo de produto com esse nível de violência, principalmente relacionado a pessoas pretas pode chegar a gerar algum tipo de entretenimento para seu público, que aqui se esvai ao se aproveitar de ferimentos não cicatrizados num mundo que continua bastante racista. Porém assim como a história dos Emorys, tentamos de toda forma resistir e lutar ocupando espaços, marcando presença de todas as formas possíveis e com isso gerar uma mudança de pensamento na sociedade.

Gostou? Veja o trailer, mas já assistiu, comente logo abaixo sobre o que achou da série.

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