Excelente! O equilíbrio perfeito entre drama e terror fez desse longa sobrenatural um dos mais impactantes de 2020.

A realidade da imigração é uma questão global problemática que ano após ano ganha novos contornos dramáticos, milhares de famílias de países empobrecidos por constantes guerras que acentuam a fome e a pobreza, saem de suas terras natais em busca de refúgio em países em sua maioria europeus, para recomeçar a vida e encontrar uma forma de seguir em frente apesar do passado doloroso. Estou dizendo tudo isto, pois este longa da Netflix, “O Que Ficou Para Trás” (His House, 2020) chega trazendo essas questões e muitas outras em um thriller de terror que vai além dos sustos e aparições fantasmagóricas.
A premissa do filme conta a história de Bol Majur (Sope Dirisu) e Rial Majur (Wunmi Mosaku), um casal de refugiados sudaneses que saem de seu país de origem assolado por uma guerra civil, a fim de buscar refúgio na Inglaterra, ao chegar lá, se veem sofrendo para adaptar-se à nova vida, enquanto tentam se libertar dos fantasmas do passado. A partir desta premissa, o longa escrito e dirigido pelo estreante Remi Weekes constrói uma narrativa com uma base dramática muito forte, usando o terror para criar um ambiente claustrofóbico e paranoico para seus protagonistas.
O primeiro ato é bastante competente em familiarizar o expectador, o casal é relocado para uma residência em uma cidade da Inglaterra, porém ao mesmo tempo vamos descobrindo que Bol e Rial tiveram uma travessia difícil até chegar a Europa e isso deixou marcas. Aos poucos o roteiro vai abrindo as lacunas na vida do casal, mostrando que existe cicatrizes no passado de ambos que começam afetar sua convivência, nesta fase de adaptação, ambos tentam se integrar a uma sociedade inglesa que parece não aceita-los apesar de providenciarem tudo que é necessário para que recomecem a vida.
O interessante de “O Que Ficou Para Trás” é que Weekes não demora para apresentar seus elementos de terror, criando uma atmosfera tensa e densa desde o início envolvendo quem assiste. Tudo é construído de uma forma bastante sólida, à medida que entendemos mais da história da dupla protagonista, mais o terror psicológico se torna presente na narrativa, carregada de elementos tribais e culturais atrelados a lendas sudanesas.

A primeira metade do filme não entrega sustos fáceis, conseguindo aumentar a tensão aos poucos enquanto insere mais elementos dramáticos para dar corpo a história. O roteiro se abre em duas vertentes que se entrelaçam em um determinado momento, a primeira com Bol que parece querer a qualquer custo seguir em frente e se inserir rapidamente dentro da sociedade inglesa e esquecer o passado que tanto lhe atormenta. Por outro lado, temos Rial, passiva, mas ao mesmo melancólica e abalada psicologicamente, ela não consegue se adaptar em um país que parece não lhe abraçar ou se importar com seu bem-estar.
Tudo isso é cuidadosamente bem dosado na trama, mas só funciona pela sintonia de Sope Dirisu (Gangs of London) e Wunmi Mosaku (Lovecraft Country) em tela, o primeiro com uma atuação excelente, fazendo todos os elementos sobrenaturais e psicológicos da trama funcionarem a contento, um personagem assombrado constantemente atormentado que são expressos de forma exemplar pela presença de tela de Sope. Por outro lado, temos uma atuação brilhante de Wunmi, que possui sentimentos reprimidos que vão sendo liberados aos poucos revelando uma realidade assustadora ainda mais impactante com as ótimas revelações da segunda metade do filme.
Com um elenco tão afinado e entregando suas melhores atuações em tela, Remi Weekes aproveita para brincar com elementos característicos do terror moderno, ao mesmo tempo que investe em mostrar a experiência sofrida por milhares de refugiados atualmente colocando os traumas e medos que assolam essas pessoas num escopo psicológico através dos receios de Bol, representando essas pessoas que são forçadas a deixarem seus lares, forçadas a deixarem suas nações sofrendo com precariedade de viagens que muitas vezes matam e acabam por destruir famílias antes mesmo de chegar no seu destino. Weekes é cauteloso, mas toca na ferida com uma direção extremamente meticulosa e com bastante personalidade sem medo de chocar ou assustar seu público.
Em termos técnico, o filme é excelente, a trilha sonora é pontual, a fotografia é um espetáculo à parte, usada aqui de uma forma bastante esperta, inclusive numa sequência de vertigem antológica quando Bol precisa encarar seus demônios de frente, a cena é simplesmente linda, assustadora e arrebatadora. A direção de arte consegue dar uma personalidade bastante interessante ao interior da casa, enquanto a fotografia mais clara fora da casa dá um tom isolamento externo e estranheza de uma Inglaterra nada receptiva, dentro ela é escura, claustrofóbica e ao mesmo tempo familiar.
Uma das qualidades de “O Que Ficou Para Trás” é parecer realmente uma produção de algum país africano (na verdade ela é um produção britânica), talvez isso seja evidente por conta das pessoas negras na frente e por trás das câmeras e a forma como o filme captura a essência dos povos africanos de uma forma bastante autêntica inserindo mitos, conseguindo fazer uma boa ambientação e usando elementos narrativos desses povos que realmente ajudam a enriquecer a trama.
De uma forma geral, “O Que Ficou Para Trás” é um filme fantástico, consegue equilibrar elementos dramáticos e usá-los como mecanismo de terror de uma forma bastante eficiente. O filme é muito bem executado e Remi Weekes consegue fazer uma estreia consistente trazendo não só um assunto relevante, como urgente que é a questão dos refugiados e como estes ainda sofrem com a readaptação ao serem acolhidos por outras nações. O longa é considerado terror, mas pode dizer que é um drama pesado carregado de trauma, remorso e dor, mostrando que a realidade ainda é mais pesada que qualquer aparição fantasmagórica apresentada em tela. Esta foi de longe uma das obras mais interessantes do ano passado.
Gostou? Veja o trailer a seguir. Se já assistiu ao filme, comenta abaixo, quero saber o que você achou.

4 comentários sobre ““O Que Ficou Para Trás” – Crítica”