Uma experiência cinematográfica com pé no cinema indie e que faz você sentir emoções em todos os sentidos.

É complicado falar de “As Ondas” (Waves, 2019), após assisti-lo me peguei pensando muito antes de conseguir redigir algumas palavras para descrever o que foi assistir e absorver este filme. O longa dirigido por Trey Edward Shults (Ao Cair da Noite) vai além daquilo que poderíamos chamar de narrativa convencional, e é isso que o torna tão peculiar, tão envolvente, capaz de fisgar sua atenção nos primeiros minutos e de chocar como poucos no gênero.
O filme é uma história foca nessa família negra norte americana que vive no subúrbio e que se vê numa situação complicada após uma morte abalar tudo aquilo que construíram ameaçando todo esse alicerce familiar. Tentei ser vago na sinopse, porque este filme merece ser descoberto, talvez fique difícil para uma audiência acostumada com blockbusters descerebrados abraçar uma narrativa como esta, mas acredito que serão compensados se derem uma chance.
A narrativa também escrita por Trey Edwards Shults tem uma premissa comum, mas seu longa não tem nada de comum, isto já fica claro no primeiro ato quando o filme mostra a personalidade de Trey na direção, com tomadas de câmera inusitadas, trilha sonora pulsante e um desenvolvimento de personagens capaz de chamar a atenção de quem assiste.
No primeiro momento acompanhamos a vida desta família bem-sucedida, os filhos Tyler (Kelvin Harrison Jr.) e Emily (Taylor Russell) na escola, assim como seus pais Ronald (Sterling K. Brown) e Catherine (Renée Elise Goldsberry) em casa. É um primeiro ato de descobertas para o espectador, onde Trey trabalha a dinâmica da família e começa a mostrar vestígios de uma relação que aparentemente é perfeita, mas que no fundo se mostra bastante perturbada principalmente quando vemos a relação entre Ronald e Tyler.

A trama pode ser definida como drama adolescente, mas arrisco dizer que a narrativa vai além, trazendo um drama familiar bastante consistente e muito bem solidificado. “As Ondas” é um longa pesado e cheio de camadas, as respostas não são fáceis e elas não vem fáceis, mas tudo está lá, pincelado de uma forma bastante clara, onde o roteiro começa a desenvolver uma dinâmica explosiva como se fosse uma fagulha de pólvora prestes a explodir.
O centro da história no primeiro ato é Tyler, o resto da família ganha características e personalidade no decorrer da trama, mas é através dele que a narrativa se desenvolve realmente. O garoto é apresentado para nós como um bom aluno de uma escola de classe média, focado, com um futuro promissor na luta greco-romana, tendo uma relação bastante apaixonada com sua namorada e que aparenta viver a vida sem limites como todo jovem da sua idade.
Porém aos poucos, vemos que ele sofre com relação autoritária do pai, que o cobra e o puxa até o limite para ser o melhor nas competições de luta, tornando o ambiente de convivência familiar um tanto quanto tóxica. As coisas começam a piorar quando surge um problema físico do mesmo que pode colocar se futuro nas lutas em risco e tudo vira do avesso quando surge um entrave na sua relação com a sua namorada Alexis (Alexa Demie). “As Ondas” realmente é um filme de dois atos, com primeiro focado em Tyler e o segundo focado em sua irmã Emily, separados por uma grande reviravolta quase no meio da história.
O filme não poupa os expectadores, a tensão crescente é intensificada pela forte trilha sonora, que em alguns momentos parece funcionar como um personagem, outras vezes serve como espectro dos sentimentos e emoções dos personagens, tudo regado a muita música boa com nomes que vão desde Kanye West, passando por Kendrick Lamar até chegar em Frank Ocean. Assim como seu título em inglês, “Waves” é um longa que transparece mesmo como ondas ao mar, que vão indo e voltando como a maré, aqui representado pelos problemas que aparecem na superfície, e somem de repente, mas quando retornam o estrago é maior e difícil de apagar.

Tecnicamente o longa é impecável, em destaque temos a fotografia da obra que é visualmente magnifica acentuando ainda mais a aura mais intimista e as vezes até escapista (no sentido livre da palavra) do filme. O ritmo é muito bom na primeira parte, mas devo dizer que cai um pouco na segunda, e talvez canse um pouco o expectador, mas a decisão foi acertada devido a reviravolta que acontece durante a trama, além disso as atuações do elenco seguram muito qualquer problema de ritmo que o longa possa ter.
Falando em elenco, este é outro destaque que merece ser citado aqui, Kelvin Harrison Jr. (Luce) dá um show no papel do complexo, impulsivo e perturbado Tyler, o ator consegue trazer nuances para o personagem e se expressar sem dizer muitas palavras. Outro destaque é Taylor Russell (da série Perdidos No Espaço) no papel de Emily, a atriz segura muito da metade para o final do filme com uma performance contida, mas extremamente poderosa carregada de culpa e receios. Temos também Sterling K. Brown (Pantera Negra) no papel de Ronald, um pai apaixonado, mas que não consegue controlar o temperamento quando se trata do futuro do filho mais velho. Por último temos Renee Elise Goldsberg (da peça musical Hamilton) numa boa atuação, assim como o sempre competente Lucas Hedge (Manchester Á Beira Mar).
Falar mais sobre essa produção da “A24” seria revelar as surpresas do longa, mas em resumo digo que este filme é uma grande obra, possui uma visão complexa da sociedade norte americana e me surpreendeu ter sido escrito por uma pessoa branca ao retratar a vida de uma família negra em um subúrbio de uma forma tão intimista, o filme não toca diretamente nas questões raciais, mas elas estão lá presente nas entrelinhas através de breve diálogos e ações. Ao conseguir criar uma trama organicamente equilibrada onde ações impulsivas geram consequências quase que irreversíveis, ao criar personagens complexos cheios de camadas e complexidades, mostrando que nem tudo é preto no branco, Trey consegue fazer uma obra experimental envolvente, onde os dramas recorrentes são acentuados pela direção apurada e a trilha sonora excelente, tornando “As Ondas” um drama poderoso e chocante.
Com um elenco liderado por Kelvin Harrison Jr, temos aqui uma narrativa complexa que explora a vida de uma família negra de classe média de uma forma brilhante, conceitual e elevada por ótimas atuações. –
Certificado Excelência Negra
Gostou? Veja o trailer logo abaixo e se já assistiu ao filme, comenta o que achou nos comentários abaixo.

4 comentários sobre ““As Ondas” – Crítica”