“Malês” – Crítica

A luta pela liberdade de um povo. O projeto de vida de Antônio Pitanga se torna um filme carregado de religiosidade, ancestralidade e o desejo de liberdade num pedaço importante da história negra brasileira.

Foto/Reprodução – Imovision

A luta pelo fim da escravidão no Brasil, começou mais de 100 anos antes da abolição em 1888, com várias revoltas se tornando cada vez mais frequentes com negros escravizados e alforriados planejando e se levantando contra o Império Português e os grandes fazendeiros escravocratas. Quando sistema vira uma fábrica de moer pretos, cabe aos próprios se organizarem e lutarem por sua própria liberdade.

Digo isto, para falar do longa que estreou nos cinemas dia 02 de outubro, “Malês”, dirigido por Antônio Pitanga e que conta a história de um grupo de escravizados que prepararam um levante em Salvador no ano de 1835 na tentativa de derrubar o império brasileiro e conquistar a tão sonhada a liberdade.

O longa brasileiro produzido pela Obá Cacauê Produções e distribuido pela Imovision, possui suas limitações de orçamento, mas em toda sua projeção, percebemos que o filme comandado por Antônio Pitanga é cauteloso em explorar o lado cultural e religioso da revolta, de forma capturar a atenção do expectador e assim entregar um filme com uma aura forte, daquelas que dão fervor principalmente para quem é preto ou para quem é fascinado pela história brasileira no que diz respeito a insurreições.

Foto/Reprodução – Imovision

Não há dúvidas que “Malês” é um filme que respeita a história que está contando, ao mesmo tempo que não se exime de mostrar as atrocidades da escravidão e as motivações dos guerreiros que ali se unem, muito por conta da fé ao islamismo, afinal Malês significa muçulmanos na língua iorubá, e é esta religião que serve como fio condutor para uma luta ainda maior.

O roteiro escrito por Manuela Dias (Vale Tudo), é até historicamente correto na maior parte do tempo, inclusive notasse um cuidado de pesquisa na forma como tudo é retratado, mas infelizmente se perde um pouco ao focar em tramas paralelas menos interessantes que acabam ocupando um espaço desnecessário na narrativa. Os diálogos expositivos demais, dão um tom didático e piegas para a obra, porém ajuda expectadores mais leigos a se contextualizarem sobre este período.

O fato é que o grande trunfo deste filme é sua direção, que apesar de achar que falta um toque mais cinematográfico, consegue ser executada de uma forma correta explorando a vivência entre os escravos que criam uma irmandade forte inabalável. Este fato é percussor para unir outros personagens de religiosidades diferentes que conferem ao filme um tom de universalidade preta ao contexto da famosa “Revolta dos Malês”, que aconteceu em 24 de janeiro de 2025.

Foto/Reprodução – Imovision

A trama inicialmente começa na África, durante o casamento do jovem Dassalu (Rocco Pitanga) e da jovem Abayome (Samira Carvalho), antes de serem separados, capturados e levados para o Brasil. Narrativamente o roteiro consegue mostrar um momento breve de liberdade, antes de embarcar nas atrocidades do período escravagista brasileiro mostrando o sofrimento e desejo de luta desses personagens.

Claramente “Malês” tem uma limitação orçamentária que acaba diminuindo o escopo do filme em relação a revolta. Porém a direção de Antônio Pitanga, escolhe acertadamente enquadramentos mais íntimos em momentos de pura celebração e união entre esses personagens que vivem seus ideais sem medo de sofrerem represálias do governo local e dos escravocratas.

É criando este elo cultural que o filme cresce, ao explorar rituais islâmicos, rituais do candomblé, dentre outras manifestações religiosas que mantém na memória desses escravos suas tradições e costumes, ao mesmo tempo que cria uma unidade entre diversas micro sociedades negras que acabam encontrando um denominador comum para se unirem em prol de uma causa.

Foto/Reprodução – Imovision

Em termos técnicos, fica claro que mesmo com orçamento apertado, existe um cuidado estético em retratar bem aquela época no século XIX da forma mais verossímil possível. Ainda que o filme caia no clichê de emular folhetins novelescos em alguns momentos, a narrativa consegue trazer riquezas de detalhes que mostram ao menos que o trabalho parece ter tido consulta de bons historiadores.

O grande problema de “Malês”, está exatamente nas subtramas e na magnitude do seu terceiro ato. O longa tem suas virtudes, mas a escrita de Manuela Dias, as vezes soa rasa quando entra no campo da ficção e deixa os fatos reais de lado, é onde os diálogos parecem unidimensionais e clichês, carecendo de uma carga emocional maior.

A sequência final, onde eclode a guerra, é carregada de simbolismo, força, tragédia e fervor, mas peca por não conseguir mostrar de forma abragente o levante de 600 escravos em prol a uma causa, se limitando a algumas poucas cenas na guerra campal nas ruas de Salvador. Ainda assim, o filme consegue nos fazer vibrar e importar com os personagens neste final devido a entrega do elenco majoritariamente preto.

Foto/Reprodução – Imovision

Enquanto Camila Pitanga (Beleza Fatal) nos poucos momentos de tela que possui, brilha como uma escrava livre que tenta cuidar dos filhos enquanto vê o marido participar desta perigosa revolta, temos aqui outros destaques como o ótimo Rodrigo de Odé no papel de Ahuna, bem como Edvana Carvalho (Pantanal) no papel de Iyá Nassô, além de Rocco Pitanga no papel de Dassalu, Samira Carvalho no papel de Abayome, bem como os ótimos Wilson Rabelo e Antônio Pitanga em participações marcantes.

Com pontos positivos tão fortes, mesmo caindo em alguns estereótipos de adaptações baseadas em fatos, “Malês” é uma retratação digna, pois é feita com carinho ao conseguir trazer uma atmosfera encorajadora de um grupo de escravos que serviram como percussores de uma revolta que influenciou gerações de pessoas negras a lutarem pelo fim da escravidão que aconteceria dali mais de 53 anos depois numa luta incessante pela liberdade, além do direito de ser gente e garantir uma vida digna para os seus.

De uma forma geral, esta obra é uma história poderosa que merece ser assistida na tela grande principalmente por mostrar a potência e força do povo preto em sua plenitude. Subvertendo expectativas, Antônio Pitanga consegue trazer a vida uma trama poética, viva e vibrante que deve ressoar forte em pessoas pretas, assim como também em todos aqueles que sonham com um mundo mais justo e igual, onde a intolerância e a injustiça, são vencidos pela força da fé, a firmeza de um ideal e a potência coletiva como força de mudança. E não há elementos mais fortes do que estes para contar uma grande história.

Gostou? Veja o trailer abaixo e diga nos comentários o que achou da história.

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