Na Coluna Especial do dia Consciência Negra, o Hype Negro traz uma reflexão importante sobre o momento preto na TV brasileira.

Aproveitando o dia da “Consciência Negra”, resolvi voltar meu olhar para um momento interessante na TV brasileira, momento este de transição e finalmente abraçando a diversidade preta após mais de 70 anos de existência com atores e atrizes negros tentando cavar seu espaço na teledramaturgia e tentando fugir de estereótipos na maioria das vezes racistas e preconceituosos, reflexo infelizmente da nossa sociedade.
No dia 4 de novembro de 2024, a Rede Globo realizou um feito na sua faixa de novelas. É a primeira vez na história que três mulheres pretas protagonizam novelas da emissora de forma simultânea. Anteriormente já tínhamos atingindo um grande patamar em 2023 quando três novelas protagonizado por pessoas pretas foram exibidas quase na mesma toada, com “Amor Perfeito” protagonizado por Diogo Almeida na faixa das seis, “Vai Na Fé” protagonizado pela Sheron Menezes (finalmente ganhando um papel de destaque depois de anos mostrando talento nas novelas) na faixa das seis e “Travessia” protagonizado por Lucy Alves, substituída por outra protagonista preta em “Terra e Paixão” com a atriz Barbara Reis, ambas na faixa das nove.
É nesta evolução que as atrizes Gabz (25 anos) em “Mania de Você” na faixa das nove, Jessica Ellen (32 anos) em “Volta Por Cima” na faixa das sete e Duda Santos (23 anos) na recente “Garota do Momento” na faixa das seis, consolidam um movimento preto que veio para ficar. Depois de décadas, parece que a chave virou, e para melhor, com um claro sinal vindo da maior emissora do país que vai finalmente dar espaço na frente e nos bastidores para que pessoas pretas contem e sejam parte constante da teledramaturgia brasileira.

O movimento é pertinente, principalmente devido as várias inciativas internas da Globo de valorizar atores e atrizes pretas que a muito tempo faziam os mesmos personagens, mas que agora passam a ter destaque mais significativo. É claro que isto não é um movimento apenas da emissora carioca, no SBT novelas infantis como a recente “A Infância de Romeu e Julieta” de 2023 que traz um protagonista mirim preto interpretado pelo ator Miguel Ângelo e até mesmo a Record que em 2019 investiu em Lidi Lisboa para ser protagonista da novela bíblica “Jezabel”.
Ou seja, existe espaço para todos abraçarem a diversidade preta, mas também existe uma certa preocupação que isto não seja apenas um movimento passageiro que tenha começo e fim, mas que seja normalizado. Esta onda de representatividade é algo em construção, que precisa ser valorizado pela sociedade e precisa ser inserido organicamente e aos poucos nas casas dos brasileiros.
O caminho foi brilhantemente pavimentado por Ruth Cardoso, Léa Garcia (Um dia Com Jerusa), Zezé Motta, Chica Xavier, Neusa Borges, Milton Gonçalves, Antônio Pitanga, Grande Otelo, Mussum, Isabel Fillardis, Taís Araújo, Lázaro Ramos, Camila Pitanga, dentre outros atores, atrizes e artistas que mostravam através do talento, da versatilidade além do que era oferecido em suas respectivas épocas, que podiam interpretar bons papéis, que podiam ser protagonistas, que podiam ser parte integral da história da dramaturgia brasileira dividindo espaço com artistas brancos e de outras etnias de forma igual.

Demorou muito tempo, eu mesmo, questionei várias vezes sobre os mesmos atores brancos sendo escalado de forma exaustiva em diversas novelas, mas sem dar espaço para atrizes e atores pretos que estavam sempre ali, mas nunca viam a oportunidade de se destacar. É claro que para chegarmos ao feito realizado por essas atrizes novas, mas cheia de potencial, foi preciso subir uma montanha, realizado de forma coletiva através dos nomes citados anteriormente, como todos os movimentos pretos pela história, sendo o grande desafio permanecer no topo.
Veja bem, ao mesmo tempo que o público preto está sendo agraciado, a teledramaturgia brasileira passa por uma crise de identidade e ideias criativas, muito é questionado pelo público que as novelas perderam o charme, sendo esteticamente bem acabadas, mas pobres de conteúdo, repetindo tramas, trazendo uma quantidade grande de personagens esquecíveis, bem como não sustentar bem suas premissas, que na maioria das vezes mudam drasticamente de um começo sólido, fechando na maioria das vezes de forma medíocre.
É importante para nós, como expectadores, separarmos estes dois acontecimentos, o movimento de “empretecimento” da TV é algo necessário, que precisava e precisa acontecer, afinal a maior parte da população brasileira é preta e parda, é preciso representar esta parcela, é preciso que o expectador se veja na tela. Sim, vai haver um incomodo, mas a normalização trará boas mudanças para TV.
Enquanto o movimento da falta de criatividade fica na conta dos autores e diretores de entretenimento e dramaturgia das emissoras, que estão numa onda preocupante que se apoia em remakes e continuações que boa parcela do público não pediu, é fato que a renovação de autores de novela está bem devagar, com alguns lampejos de talento de contadores de história surgindo a conta gotas.

Das três novelas exibidas atualmente na TV Globo, a mais preocupante que traz exatamente vestígios do que foi dito nos dois parágrafos anteriores, é “Mania de Você”, que começou bem, mas está desandando a passos largos com um texto que para muitos não tem pé nem cabeça, prejudicando inclusive o quarteto protagonista, refletindo inclusive no papel de Gabz como a cozinheira Viola, que teve uma boa construção individual, mas depois foi se perdendo ganhando inclusive antipatia por parte do público.
E neste ponto, nem é culpa da atriz, que se esforça num papel que é o centro da trama, mas é prejudicada por falta de momentos de desenvolvimento para chegar na catarse, com o autor João Emanuel Carneiro totalmente perdido com clara interferência da cúpula da Globo numa narrativa que agora está apelando para clichês do gênero para salvar a audiência da novela que cai a cada dia.
Veja bem, não é só colocar uma protagonista preta no papel principal, você precisa dar material e oportunidade para que ela brilhe e consiga carregar a novela. No caso de Gabz, dividir os holofotes com Agatha Moreira e Chay Suede, tem sido complicado, mais porque o roteiro não favorece e mais porque a experiência dos dois atores, sobressaem mesmo com uma escrita ruim. Gabz atua com o que tem em mãos e falta ao autor abrir espaço para que ela sobressaia também, pois nas poucas cenas de destaque que teve, conseguiu se sair bem.

É algo que as atrizes Jessica Ellen e Duda Santos, não estão passando em suas respectivas novelas no momento. “Volta Por Cima” é escrita por Claudia Couto, que escreveu para Taís Araújo na morna “Cara e Coragem”, mas parece ter finalmente encontrado seu tom como contadora de história ao colocar sua protagonista Madá (Jessica Ellen) numa trama urbana leve, com personagens gente como a gente, que lembra até mesmo o sucesso “Vai Na Fé”, mas com diferencial de ter um casal protagonista preto com a trama voltada basicamente 100% para eles, com o co-protagonista interpretado pelo charmoso e gente boa João (Fabrício Boliveira).
Não existe uma fórmula para escrever para artistas pretos, mas existe uma forma colaborativa de entender a negritude desses talentos e incorpora-las em tramas que funcionem. No caso de “Volta Por Cima”, o amor de Madá e João, é puro suco da paixão preta em sua plenitude, é leve, bem desenvolvida, os atores tem química e a novela funciona que é uma beleza, apoiado é claro por um elenco que é diversificado com espaço para todos brilharem.
O mesmo podemos dizer de “Garota do Momento”, que com apenas duas, quase três semanas no ar, é o melhor produto da teledramaturgia da TV aberta atual. Não se sabe se continuará assim até o final, mas a mocinha Beatriz interpretada por Duda Santos causou uma boa impressão desde o início, com a trama se passando nos anos 60, com a personagem em busca de encontrar a mãe que a abandonou na infância, acaba também achar um grande amor formando o romance interracial com o ator Pedro Novaes.

A trama criada por Alessandra Poggi revive o passado, mas com texto voltado para o presente, trazendo histórias pretas relevantes numa época que não eram citadas. E o melhor é que funciona, principalmente porque a autora e o cineasta Jeferson De (M8 – Quando a Morte Socorre a Vida), que dirigi numa colaboração conjunta que mostra uma qualidade técnica imensa no texto e também na forma como entende o papel das pessoas pretas numa época em que o preconceito velado é colocado em pauta transformando a personagem de Beatriz numa protagonista forte que não abaixa a cabeça e entrega grandes cenas.
O elenco coadjuvante é o misto de atores novatos e veteranos como a saudosa Betty Mendes, além de Lilia Cabral, Carol Castro, Maisa, Paloma Duarte, Danton Mello, Letícia Colin, Eduardo Sterblitch e Fabio Assunção, com atores pretos que estão ganhando espaço como a sempre ótima Tatiana Tiburcio (Anderson Spider Silva), Carla Cristina Cardoso, Mariana Sena, Solange Couto, Mariah da Penha, Gaby Amarantos, Cauê Campo, Ana Flávia Cavalcanti e Ícaro Silva, mostrando que é possível ter elencos mais diversos com um ambiente representativo onde todos podem conviver harmoniosamente.
É neste ponto que que tudo que mencionei faz total sentido, estamos sim vivendo uma época mágica na TV brasileira, uma mudança que demorou, mas que as engrenagens continuam se movimentando e agora que a história foi feita, é continuar abrindo espaço para artistas e cineastas pretos usarem seu talento e influência cultural para trazerem a negritude ainda mais para as novelas brasileiras.

No mês da Consciência Negra, celebrar protagonistas negras em três novelas diferentes é simplesmente gigante, por tudo que o brasileiro que acompanha novelas a séculos sempre testemunhou, esta mudança era mais que necessária. Porque a TV tem que ter espaço para todos, as pessoas precisam se ver sendo representadas, bem como celebradas. Em um mundo que ainda precisa evoluir, só seremos iguais, quando as oportunidades forem iguais. O primeiro passo foi dado, a luta segue constante para que no futuro, exista uma normalização ainda maior de pessoas pretas no centro das narrativas da TV brasileira, sendo motivo de sucesso, relevância e exaltação.

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