“O Livro de Clarence” – Crítica

A jornada de um trambiqueiro. Dirigido por Jeymes Samuel, esta comédia bíblica falha em trazer um humor mais afiado, porém algumas referências sociais relevantes e um emocionante final, salvam a obra de um resultado abaixo do esperado.

Fonte: Tristar Pictures & Legendary

Existe várias formas de fazer uma crítica social, seja através do drama, seja através do humor. O cinema norte americano, consegue fazer isto muito bem, principalmente para reforçar o quanto o racismo ainda está embutido em sua sociedade atual. Filmes como “Corra!”, “Cara Gente Branca” e “Infiltrados na Klan”, são bons exemplos como o gênero vária para trazer reflexões importantes sobre questões raciais, que ainda são um assunto vigente.

Digo isto, para falar do novo longa da Tristar Pictures em parceria com Legendary, “O Livro de Clarence” (The Book of Clarence, 2024), dirigido por Jeymes Samuel (Vingança & Castigo), traz uma história intrigante que evoca os tempos bíblicos numa releitura das passagens do Messias numa sociedade marginalizada através de Clarence (LaKeith Stanfield), um jovem batalhador que decide utilizar o poder, ensinamentos e popularidade do filho de Deus, para benefício próprio e assim mudar sua vida.

O diretor Jeymes Samuel, também assina o roteiro e se utiliza de algo que havia dado certo no seu longa anterior, “Vingança & Castigo”, que é pegar um recorte histórico, inserir atores negros num contexto onde normalmente é protagonizado por brancos e adicionar uma pitada de crítica social. Naquela ocasião, o western com elenco de primeira resultou em um dos melhores filmes de 2021, desta vez a fórmula é semelhante, mas agora apostando na comédia com drama e uma pitada de surrealismo.

Fonte: Tristar Pictures & Legendary

A trama dividida em três partes traz não tem uma grande inspiração em termos narrativos, porém “O Livro de Clarence” tenta criar um universo em paralelo aos acontecimentos das histórias de Jesus, criando todo um contexto em que falsos profetas estão se aproveitando da fama do Messias para se auto proclamar escolhidos. Clarence é um deles, um cidadão ateu que acha que conhecimento é maior que a fé que a população tem no salvador.

Neste ponto o roteiro é inteligente, cria a jornada do protagonista de uma forma quase inversa a jornada de Jesus, tirando os privilégios de Clarence, que age com inteligência ao juntar alguns aliados e começar a se passar pelo escolhido, promovendo “milagres” enquanto enche os bolsos de grana. Existe sim aqui uma crítica social bastante pertinente, algumas subtendidas, outras bastante explicitas sempre com choque entre razão e fé se digladiando em tela.

Talvez, a maior incógnita do filme seja a falta de ritmo e refinamento no humor para deixar o expectador mais à vontade em abraçar o que está sendo contado. Jeymes toma cuidado para não profanar a fé de ninguém, ao invés disto traz boas reflexões sobre a figura do Messias negro, não aquele branco retratado pela igreja católica, mas um pouco mais próximo da realidade dos historiadores descobriram em suas pesquisas, desta forma o contexto racial acaba ficando mais evidente.

Pontius Pilate (James McAvoy) and Clarence (Lakeith Stanfield) in THE BOOK OF CLARENCE.

O que nos leva a crer que “O Livro de Clarence” poderia ser melhor com um pouco mais de acidez, a trama na primeira metade tem alguns simbolismos, mas falta um objetivo mais claro, os personagens parecem existir ali, mas falta um senso de objetividade. A segunda metade é um pouco melhor por conta disso, é quando também a direção começa a se arriscar mais e as histórias de Jesus começam a misturar a história de Clarence em sequências que realmente deixam o longa melhor, como a cena do andar sobre as águas e a cena da crucificação, esta última inclusive onde o filme realmente consegue inserir sua crítica social pertinente numa referência aos diversos corpos negros mortos de forma injusta na atualidade, a Clarence sendo condenado a crucificação sem motivo aparente.

Em termos de produção, o filme é caprichado, a trilha sonora assinado pelo próprio Jeymes Samuel é boa, apesar de não ser marcante. Os efeitos visuais, vestimentas e o contexto histórico são bem caracterizados e decentes. O elenco em si é um atrativo a mais, além da presença sólida de Lakeith Stanfield (Atlanta) no papel de Clarence, temos ainda Omar Sy (Lupin), a bela Anna Diop (Nós), RJ Cyler (Vingança & Castigo), Caleb McLaughlin (Stranger Things) e as participações de David Oyelowo (E Depois?…), Alfre Woodard (Agente Oculto), Teyana Talyor (Um Príncipe em Nova York 2), Benedict Cumberbatch (Doutor Estranho e o Multiverso da Loucura) e James McAvoy (Fragmentado).

A verdade é que a obra possui uma trama estranha, que até tem um estilo próprio que Jeymes Samuel sabe empregar em suas produções, talvez falte um pouco mais de ousadia, mas as boas intenções estão ali, num contexto afirmativo que parece clichê à primeira vista, mas reforça a luta racial que ainda é travada para que pessoas pretas tenham seu lugar ao sol, mostrando que até mesmo na fé, existe um apagamento racial.

Fonte: Tristar Pictures & Legendary

De uma forma geral, “O Livro de Clarence” requer paciência, claramente não será para todos, o filme é longo, poderia ser menor, as vezes parece cair em meios as suas ambições, mas encontra seu caminho e entrega um final consistente. Ainda que seja abaixo do seu trabalho anterior, Jeymes Samuel tenta através de uma comédia bíblica trazer reflexões sobre falsos profetas, fazendo uma releitura racial que nos convida a refletir em uma linha narrativa alternativa.

E se o Messias tivesse seguido um caminho diferente em meio a sua descrença em busca da própria fé? Elevado por uma boa atuação LaKeith Stanfield, o filme nos ganha por ser provocador, e mesmo não sendo perfeito na forma de entregar suas ideias, merece uma atenção especial ao apresentar um cinema arte que deseja fazer seu público pensar, e neste ponto quem ganha somos nós.

Brasil: Disponível no Max

EUA: Disponível na Netflix

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