Um drama forte e triste que vai fundo nas injustiças do sistema judiciário dos EUA numa produção baseada em fatos bem dirigida e bem atuada que surpreender pela qualidade.

19 de Abril de 1989, Central Park, Nova York.
Esta data poderia ser uma data comum como qualquer outra, mas ficou marcada para sempre na história dos EUA devido aos acontecimentos envolvendo cinco jovens negros condenados injustamente pelo crime de violência sexual envolvendo uma jovem de 28 anos branca e de classe média alta. Esta minissérie da Netflix chega carregada de informações que consegue em quatro episódios mostrar como um dos casos mais controversos da justiça norte americana foi executado mudando não só a vida desses indivíduos, mas também causando um impacto que levou a mudanças no sistema de leis no judiciário americano.
A produção está sobre comando de Ava Durvenay (Selma, 13th), que além de produzir, dirige os episódios, assim como assina o roteiro em parceria com outros roteiristas. E neste caso não há pessoa melhor para contar a história de uma forma justa e extremamente precisa do que a mulher que dirigiu um dos melhores documentários dos últimos anos, “13° Emenda”, que, aliás, está disponível no Netflix também, vale a pena conferir. Em “Olhos Que Condenam” (When They See Us, 2019) a diretora consegue ter a liberdade de trazer informação, expor os fatos, desenvolver personagens e mostrar como funcionava o sistema de apuração, investigação e julgamento de vítimas afrodescentes e latinos nos EUA dos anos 90.
Em quatro episódios de mais de uma hora divididos sabiamente em antes, durante e depois da condenação dos adolescentes, podemos dessa forma conhecer mais intimamente a vida dos garotos Antron McGray (Caleel Harris), Kevin Richardson (Asante Blackk), Yusef Salaam (Ethan Herisse), Raymond Santana (Marquis Rodriguez) e Korey Wise (Jharrel Jerome). Eram adolescentes entre 14, 15 e 16 anos com lares estáveis e cheios de juventude, com um futuro promissor pela frente, mas que veem seu mundo mudar de um dia para noite quando vão ao parque para se divertir e acabam sendo perseguidos e presos em uma ação da polícia que mais tarde se transformaria numa armadilha de coação e intimidação os relacionando a um crime que não cometeram.

Na Parte 1, que dá o tom da história, Ava Duvernay é cuidadosa em construir uma história ágil que mostre a relação dos cinco jovens com suas respectivas famílias numa estrutura que funciona organicamente, para depois focar nos eventos do Central Park. A narrativa é bastante cirúrgica em mostrar as coincidências e principalmente a ação da polícia em coibir a ação de vândalos no parque, mas sem separar arruaceiros das pessoas que não tinham nenhuma relação com os incidentes ocorridos no parque naquele dia, e é aí que entra a questão do preconceito racial e da xenofobia, onde Duvernay faz questão de mostrar como sistema funciona na sua forma descuidada e cruel de lidar com os fatos.
A minissérie não priva o expectador de testemunhar as injustiças e equívocos cometidos pela polícia e isso fica claro na segunda metade do piloto, quando o estupro da jovem vem à tona, você percebe o esforço das autoridades locais em achar o culpado a qualquer custo, mas sem investigar a fundo. A narrativa expõe as diversas falhas nas pistas dos policiais e o fato de usarem a premissa de que todo jovem negro ou latino é suspeito automaticamente por ser quem são. Aqui não tem meio termo, como fica claro nas cenas de interrogatório dos cinco acusados escolhidos a perfil para receberem a culpa do ocorrido, as cenas por sinal são intensas, claustrofóbicas e até difíceis de assistir.
O primeiro episódio é bastante forte e é impossível não sentir uma repulsa ou revolta com a situação toda, mas é na Parte 2 que as coisas começam a ficarem ainda mais intensas com o foco da narrativa voltando-se para o julgamento dos acusados. Se inicialmente Ava Durvenay é eficiente e crítica ao expor o problema no tratamento da polícia e dos promotores em relação aos jovens, no capítulo seguinte o roteiro mostra que o problema é ainda maior e atinge todo sistema judicial americano em condenar sem contestar as incoerências dos fatos e falta de provas para decretar um veredito mais concreto, agravado por uma superexposição da mídia que agrava o problema ao invés de procurar a verdade por trás dos acontecimentos.

Tudo isso se agrava ainda mais nas Partes 3 e 4 que foca nas consequências que as condenações têm sobre os cinco acusados, o enredo também abre espaço para uma crítica mais acentuada a condenação de jovens como adultos nos anos 90, além de pontuar os problemas agravantes no encarceramento de pessoas pretas presas nos EUA, um dos maiores do mundo. É tudo muito triste, pesado e o desenvolvimento não se estende apenas aos cinco acusados, mas também mostra as consequências para seus familiares e toda a sociedade envolta numa ferida que parece difícil de cicatrizar.
Em nenhum momento a minissérie cai de ritmo, é uma jornada intensa, às vezes até sem esperança, mostrando o quão cruel e injusto o ser humano pode ser. É um trabalho de produção caprichado, que vai desde ambientação impecável dos anos 90 até os anos 2000, sempre se atentando aos detalhes, passando pela fotografia mais fria e azulada, sem falar que em alguns momentos a direção se mostra intima, documentando cada passo, registrando cada momento, transitando entre contar uma história de drama consistente e virando um trabalho investigativo quando o momento pede. Tudo é feito de forma sutil, sem apelar para o drama fácil e o elenco ajuda muito, aliás, é importante destacar o trabalho de Jharrel Jerome (Alma de Cowboy) interpretando a versão jovem e adulta de Korey Wise, um trabalho lhe rendeu um Emmy, assim como indicações para outras performances do elenco igualmente marcantes da minissérie.
No geral “Olhos Que Condenam” é uma obra incrível, é preciso assistir, testemunhar e absorver toda a crítica social e política que a minissérie trás em seu conteúdo, sobra até alfinetadas para o ex-presidente Donald Trump (que na época teve papel importante para inflamar a população contra os condenados), sem falar este talvez seja um dos trabalhos mais importantes desta década e com certeza um dos melhores produtos lançados pela Netflix. A minissérie é bem produzida, dirigida e atuada, sem falar que aprofunda na explicação de um problema do sistema judiciário norte americano e trás informações pertinentes sobre o tema de forma clara, emocionante e questionadora, expondo injustiças, mostrando fatos onde vidas negras, latinas e até transexuais importam, e neste ponto “Olhos Que Condenam” é forte em mandar o recado, que no final das contas pode até ser sobre uma história real nos EUA, mas poderia, pode e se procurar você vai ver que acontece bastante no nosso Brasil atual.
“Indicada a 14 Emmys e vencendo em duas categorias, “Olhos Que Condenam” é sinônimo de qualidade mostrando a cineasta Ava Duvernay em plena forma entregando um produto bem acabado, bem escrito e atuado, mostrando que produções protagonizadas por pessoas pretas também possuem qualidade ímpar e podem emocionar em uma história baseada em fatos que evidencia um mundo de injustiças onde é preciso lutar sempre para não ser engolido por um sistema que ainda é regado a muito preconceito.“
– Certificado Excelência Negra
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Michael K. Williams
1966-2021 ✚
Michael participou de “Olhos Que Condenam” deixando sua marca, sua atuação aqui é uma das muitas onde ator brilha, mesmo que tenha poucas cenas. Eu pessoalmente o conheci através de seu personagem “Chalky” na série de drama “Boardwalk Empire”, desde então virei fã, o cara simplesmente se transforma em cada papel, seja na série “The Wire”, ou em dramas de fantasia como a espetacular “Lovecraft Country”, seja aonde fosse, ele deixava sua marca, felizmente deixará saudades, um legado de muito prestígio e uma carreira impecável. - Para Michael - Um HN de Respeito

5 comentários sobre ““Olhos Que Condenam” – Minissérie – Análise”