Seguindo a excelência do filme anterior, o segundo longa da antologia de McQueen traz o frescor e a nostalgia dos antigos bailes de dança numa narrativa vibrante, única e revigorante.

A melhor sensação de assistir a um filme é aquela que ele lhe causa quando você termina de assistir, pode ser de choque, pode ser de surpresa, pode ser de decepção, mas não há melhor sensação do que a de satisfação, quando você assiste uma obra que traz tudo aquilo que você esperava superando todas as suas expectativas. Um desses filmes é o romance “Lovers Rock” (Small Axe: Lovers Rock, 2020), o segundo filme da antologia Small Axe traz uma experiência única.
Este longa é uma quebra do drama vivido pelos personagens em “Mangrove”, desta vez o diretor Steve McQueen (Viúvas) sai desse gênero para entrar no romance, trazendo um clima mais ameno focado em personagens que só querem viver uma noite inesquecível, num baile de dança típico dos anos 80 que acontece na comunidade de “West London” e reúne muita música, bebida e comida numa narrativa que se passa praticamente seus 68 minutos durante este evento.
Verdade seja dita, “Lovers Rock” é uma experiência, um longa que tem uma narrativa simples, mas é um casamento perfeito do apuro técnico da produção e as boas atuações de um elenco que se entrega a proposta do roteiro escrito por McQueen e co-escrito pelo autor de livros Courttia Newland, que salpicado de pura exaltação da cultura negra, desta vez focado na descendência de imigrantes jamaicanos e seus bailes musicais contagiantes e cheios de vida ao som de muito reggae.

A narrativa começa seus primeiros minutos preparando o clima para festa onde a câmera acompanha pessoas lidando com o teste de som, enquanto na cozinha as mulheres preparam a comida, assim como outros ajustam últimos detalhes para o começo do evento. Porém a história mesmo é centrada na jovem Martha Trenton (Amarah-Jae St. Aubyn) que junto com sua amiga Patty (Shaniqua Okwok) vão juntas esta tal festa no subúrbio de uma Londres, é lá que Martha encontra Franklyn Cooper (Micheal Ward) e os dois começam a se conhecer enquanto o evento entra noite adentro.
O segundo ato, se é que pode dizer isso de um filme curto como este, é basicamente regado a muita música, dança, flertes e uma das celebrações mais lindas da negritude que já vi em tela, num baile que se transforma no verdadeiro refúgio onde a alegria, as transpirações e os diversos estilos musicais se encontram criando uma atmosfera incrível que acaba por sair da tela e contagiar quem assiste.
Tudo isso só fica melhor graças a direção de McQueen, que aqui até lembra o cineasta Wong Kar-Wai (Á Flor da Pele) e sua câmera intrusa que vai girando entre os vários ambientes acompanhando a trama principal, assim como as breves subtramas que vão se formando durante a festa, sempre tentando capturar momentos, conflitos, danças em cenas de puro êxtase com os personagens farreando por horas. A direção dele consegue ainda capturar a beleza dos movimentos e do corpo negro de uma forma sensual, habilidosa e deixam tudo mais lindo, mais romântico, mais humano criando uma atmosfera tão intimista que é difícil não se sentir apegado na trama.

A forma como “Lovers Rock” captura a essência dos bailes dos anos 80 acentuado pela cultura que a narrativa traz, que vão desde as roupas características da época, passando pelos cabelos black powers para os homens e algumas mulheres, assim como os cabelos de chapinha de outras personagens, além dos grupos dançando juntos e cantando juntos, tudo isso numa obra que promove uma exaltação de como é belo ser negro e ter um estilo próprio, e o longa simplesmente coloca isto de uma forma tão bacana, autêntica e bem feita que é impossível tirar os olhos e não se contagiar.
O cerne desta história ainda é o romance entre Martha e Franklyn, ele vai crescendo aos poucos através de breves diálogos, uma química avassaladora e um envolvimento intenso depois de um encontro puramente casual e uma troca de olhares. O bacana aqui é a sensibilidade na direção de McQueen em deixar os atores vivam essa experiência de uma forma genuína e doce que acaba por conquistar o público de imediato.
A trama ainda não esconde que mesmo celebrando a negritude e a alegria de ser negro, ainda não deixa de mostrar que os perigos ainda estão as espreitas e as vezes até alguns abusos são cometidos quando se tem muita gente junta em um só lugar, porém o longa não pesa a mão, apenas dosando esses momentos de forma pontual que não quebra a magia e a atmosfera estabelecida até então.
Como citei anteriormente, “Lovers Rock” funciona como uma grande experiência sensorial, a fotografia é belíssima, soturna, cheia de cores, porém aqui o destaque mesmo vai para a trilha sonora que dá o dom de toda a narrativa, com vários ritmos diferentes que coloca todos para dançarem e cantarem a pleno pulmões, a variação das canções típicas da época são sensacionais e traz grande satisfação para quem assiste, se você viveu os anos 80, soa como uma nostalgia incrível, se você apenas ouviu falar desta época, aqui você uma ideia completa de como funcionavam os bailes musicais daquela período.
O elenco é bom, mas o destaque mesmo fica por conta de Micheal Ward (The Old Guard) e a novata Amarah-Jae St. Aubyn que apresentam uma química muito boa em tela nos fazendo torcer para que o casal fique junto no final, o resto dos outros atores entregam boas atuações e contribuem para que o contexto da festa funcione muito bem, ainda que a maioria deles seja composto de um elenco desconhecido do grande público.
Por tudo que foi comentado, é possível dizer que “Lovers Rock” é um longa monumental com bastante personalidade e cheio nuances narrativas, um filme muito bem dirigido com um Steve McQueen em plena forma numa direção bastante precisa que pega momentos incríveis e inesquecíveis arrancando uma nostalgia muito bem vinda regada a muita música e uma vontade de ser livre e aproveitar cada momento de uma noite de festa e a celebração do amor em todas as suas formas, onde os problemas parecem longe e onde os personagens podem celebrar sua cor, seu estilo, sua negritude de uma forma tão plena que contagia quem assiste ao longa, definindo esta como uma das obras incríveis e originais dos últimos anos.
“Após um drama baseado em fatos, Steve McQueen mais uma vez mostra versatilidade ao trazer de volta a nostalgia dos bailes dos anos 80 aproveitando para exaltar a negritude em sua forma mais plena através do romance e da liberdade em um filme repleto de momentos incríveis e uma trilha sonora muito bem selecionada amparado por uma fotografia estupenda e uma atmosfera tão gostosa que só elevam a delicada história de amor de Martha e Franklyn” –
Certificado Excelência Negra
Gostou? Veja o trailer. Se já assistiu a este romance, comenta abaixo sobre o que achou.
