“A Vizinha Perfeita” – Crítica

O privilégio branco em sua essência! O documentário da Netflix traz uma história que inicialmente parece um conflito de vizinhos, mas esconde um pano de fundo racial pesado com um resultado chocante, dolorido e triste.

Foto / Reprodução – Netflix

Em meados de 2005, o estado da Flórida foi o primeiro dos EUA a aprovar a lei “Stand Your Ground” ou “Defenda sua Posição”, que tinha o objetivo de dar poder ao cidadão de usar força letal em autodefesa sem a obrigação de recuar em uma situação perigosa. Esta lei foi usada como base para cidadãos residentes no estado se armarem e se defenderem em legítima defesa.

Porém, como toda a lei envolvendo este tipo de ação, a questão racial sempre entra em pauta, afinal existe dois pesos e duas medidas para pessoas brancas e para pessoas pretas. Este escopo vai de encontro ao tema central do premiado documentário “A Vizinha Perfeita” (The Perfect Neighbor, 2025), que estreou em janeiro no festival de Sundance e recentemente estreou globalmente pela Netflix no último dia 17 de outubro.

A narrativa acompanha o caso real ocorrido na Flórida que resultou no assassinato de Ajike Owens, uma mulher negra, pelas mãos de Susan Lorincz, uma mulher branca, que atirou a queima roupa dentro de sua residência em junho de 2023 em um dos casos geraram mais comoção nacional e indignação devido a forma como a resolução pela condenação da assassina se desenvolveu.

Não existe meio termo para a direção de Geeta Gandbhir que utiliza vídeos de câmeras corporais da polícia e outros sistemas de gravação para moldar uma linha do tempo até o fatídico dia do assassinato. Começou com um desentendimento de uma vizinha com as crianças brincando perto de sua residência, escalando em outros casos corriqueiros até terminar em tragédia.

Foto / Reprodução – Netflix

Os sinais estavam lá, a polícia aconselhou os vizinhos a não provocarem a vizinha e de acordo com o que é visto e relatado, existia uma versão dos dois lados. Não era mais fácil ignorar a vizinha? Talvez seja uma pergunta simples de fazer, mas resposta é muito mais complexa e profunda do que possamos imaginar, cabendo ao expectador não simplificar os fatos, mas entender o contexto.

Fica bastante claro que existe traços evidentes de racismo e preconceito motivadores para que a vizinha tomasse uma decisão drástica sobre as supostas importunações causadas pelos seus vizinhos segundo ela. O documentário é muito feliz em trazer cenas e relatos dos moradores construindo um escopo bastante conciso em torno do que está sendo contato em tela.

A verdade é que “A Vizinha Perfeita” é daqueles documentários que saltam os olhos pela edição inteligente e imagens reais que viram arquivos importantes para elucidação do caso e resolução de todas as motivações que levaram Susan a atirar em uma pessoa inocente, uma mulher trabalhadora, dedicada e mãe de quatro crianças que perdeu a vida por um desentendimento que era totalmente evitável.

Foto / Reprodução – Netflix

Talvez a sequência mais assombrosa e triste de todo o documentário seja o momento do assassinato em questão visto pelo ponto de vista da polícia. As reações, a indignação, a revolta e principalmente, a tristeza dos familiares de Ajike Owens ao receber a notícia do falecimento, não existe cena mais dilacerante do que os filhos saberem que a mãe não irá voltar prá casa.

A parte final com a polícia elucidando o caso e a família de Owens clamando por justiça, apenas escancara o abismo social imposta a famílias pretas nos EUA e na forma como a justiça é totalmente favorável a pessoas brancas no que diz respeito a condenação.

Existe aqui um privilégio branco que favorece pessoas como Susan, amparados pela a tal lei “Defenda sua Posição” para agir em suposta legitima defesa e matar uma pessoa inocente sem que o estado condene ou a prenda de imediato. A narrativa gera revolta, indignação e ódio, muito por conta da frieza demonstrada por Susan a situação toda, em contraponto a indignação e dor de toda uma comunidade e da família de Ajike que lutavam por justiça.

A produção, o ritmo e o roteiro são muito bem conduzidos e fica impossível não ficar vidrado com todas as informações até saber como tudo vai terminar. Claramente o documentário levanta um debate importante sobre privilégios raciais e leis que armam num país que já sofre com este tipo de crime anualmente e que na maioria das vezes, é mais acentuada para as comunidades negras.

Foto / Reprodução – Netflix

Apenas pense comigo, você que assistiu o documentário (senão viu ainda, pare agora e vá assistir), se fosse Ajike no lugar de Susan, e tivesse disparado a queima roupa e a matado, será que o tratamento, o julgamento e as ações, seriam tão lentas e calmas da forma como foi para a tal “Vizinha Perfeita”? Posso dizer com convicção que não.

Por tudo que foi comentado, “A Vizinha Perfeita” é daqueles documentários imperdíveis, ainda que seja pesado pelo contexto (prepare o coração, difícil não escorrer uma lágrima), é uma necessária forma de refletirmos sobre como o racismo e preconceito molda o imaginário de pessoas brancas que chega a um ponto que toda pessoa preta é um potencial ameaça.

Nos EUA isto é ainda mais explicito, mas no Brasil não foge muito desta realidade, porém fica claro que este tipo de leis “Defensa sua Posição”, abrem brechas para aumentar o número de mortes de pessoas pretas, que são mais vulneráveis até quando estão certos e não tem nenhum envolvimento com algo ilícito. Existe algo culturalmente cruel que pessoas como Susan se sente no direito de matar uma cidadã negra e saírem impunes. Felizmente a resolução do caso é um clamor popular por justiça, mas também um alerta de que não se pode negligenciar o tratamento dado pelas autoridades em certos casos. É preciso um debate público e reflexão sobre o tema, o documentário serve como um excelente início de conversa, mas cabe a nós desenvolver o tema, para que fatos trágicos como este, não voltem a acontecer. Este documentário é a sétima arte a serviço da sociedade.

Gostou? Veja o trailer abaixo e use os comentários para falar sobre o que achou deste documentário.

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