Valeu de Nada! O remake de uma das novelas mais celebradas da dramaturgia acaba entregando um resultado capenga e revelando um problema sério relacionado ao apagamento do protagonismo preto.

Se vocês estão lendo este texto, provavelmente vocês já descobriram quem matou Odete Roitman (ou não) e com certeza a internet deve está em polvorosa seja comentando todas as decisões deste desfecho. Infelizmente falar deste remake de Vale Tudo (2025) baseado na obra original escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères que em 1988 foi um fenômeno de repercussão e audiência, se tornando uma das novelas mais memoráveis da teledramaturgia brasileira, requer um verdadeiro teste de paciência e senso de descrença.
Sinceramente, gostaria de falar coisas boas sobre esta versão nova escrita por Manuela Dias (Amor de Mãe), porém esta versão de uma das histórias mais interessantes já criadas, é um mar de incoerências que mesmo tentando seguir a nova diretriz da Globo de ter mais representatividade em tela, transformou mais uma vez o protagonismo de uma personagem negra em um esvaziamento de pauta inacreditável.
Confesso que pessoalmente eu cai no conto do vigário, ao pensar que após a segunda onda de novelas com protagonistas negras com Mania de Você (péssima), Volta Por Cima (ótima) e Garota do Momento (boa), que ganharam análise nesta mesma coluna, tudo seria melhor, porém como foi mostrado em duas delas, existia um problema crônico de apagamento do protagonismo negro em momentos chaves da narrativa, onde as autoras não souberam dar história para suas mocinhas emponderadas em detrimentos de personagens brancas fossem elas antagonistas, ou apenas uma personagem coadjuvante de destaque.
Este problema, parecia que teria um resultado diferente em “Vale Tudo”, até porque as expectativas em cima da novela estavam grandes, apesar dos pesares, os trabalhos anteriores de Manuela Dias, até credenciavam para entregar algo bom e finalmente um papel de protagonista das nove a altura de Taís Araújo.

Infelizmente fomos enganados, a primeira metade, quando autora ainda estava próximo do texto que fez o original um sucesso com algumas poucas mudanças, o público engolia bem, até porque os grandes destaques antes da Odete (Debora Bloch) entrar em cena, foram exatamente a protagonista Raquel (Taís Araújo) e sua filha Fátima (Bella Campos), duas personagens marcantes no original vividas por Regina Duarte e Glória Pires.
As duas personagens carregavam na novela e ainda mantinham acesa a principal pergunta da novela, “Vale a Pena ser honesto no Brasil?”, pergunta esta que sempre foi o dilema moral da novela dos anos 80 e que aqui ganhou uma roupagem nova baseado no momento político que o país está vivendo. Apesar do modo aleatório, a personagem de Fátima era daquelas vilãs carismáticas que agradam o público, impossível torcer contra mesmo a gata tendo vendido a casa da própria mãe para viver uma vida de luxo no Rio de Janeiro.
Por outro lado, Raquel era aquela personagem clássica, a mocinha de boa índole, a essência da bondade do brasileiro pobre que trabalha duro e mantém a dignidade acima de tudo, a verdadeira representação do brasileiro honesto. É nesta gangorra narrativa que Manuela Dias sustentou seus textos, fazendo algumas mudanças significativas tentando evitar ser cópia do que a original foi.

Até este ponto tudo bem, acredito que um remake tem que ser atualizado, mas do jeito que foi concebido, a novela que se apresentou irregular cheia de altos e baixos até o fim, potencializado ainda com a presença bem vinda da Odete na história, porém possuia diversos núcleos com coadjuvantes mal desenvolvidos que acabaram não rendendo pouca repercussão que na maioria das vezes era negativa.
O pior de é que tudo que a novela “Vale Tudo” construiu ao longo de seus 173 capítulos foi esvaziado aos poucos à medida que Manuela Dias foi se emancipando do texto original, colocando algumas cenas pontuais como uma espécie de homenagem, mas nunca abraçando a ideia do que foi sucesso. É um processo de ego da autora que queria seguir seu próprio caminho dentro da premissa original.
Por conta deste rompante, é que a maior prejudicada do elenco da novela foi exatamente a protagonista Raquel Accioli. Uma personagem marcante vivida por Regina Duarte no original, e que nesta versão por muitas vezes ganhou mais humanidade, peso e fervor nas mãos da talentosa Taís Araújo. O problema aqui é que na segunda metade da novela, com a chegada de Odete, Raquel foi aos poucos sendo deslocada da engrenagem principal que envolvia a trama em torno da família Roitman.

E neste ponto, sentimos um sério apagamento da protagonista vivida por Taís numa clara retaliação a atriz que se mostrou insatisfeita com os rumos da personagem. Veja bem, a Raquel de 88, mesmo com a forte repercussão das personagens de Fátima e Odete na obra, nunca perdeu o posto de protagonista, inclusive sempre atrelada à maioria dos núcleos e reviravoltas.
É simplesmente revoltante e uma falta de respeito ter uma atriz do calibre de Taís Araújo e deixar o talento dela ser desperdiçado porque a autora decidiu que Odete, uma vilã, elitista, racista e preconceituosa era “a protagonista” da novela, anulando todas as histórias envolvendo a protagonista que simplesmente sumiu da trama nos últimos capítulos aparecendo para fazer apenas publicidades em meio as suas cenas no seu auge como empreendedora.
Um absurdo a forma como autores da Globo está usando a representatividade negra como token (inclusão simbólica superficial por conveniência de grupos minoritários) e acabam abraçando estereótipos que reduzem esses personagens a mero coadjuvantes servindo de escada para atores brancos.

Mais uma vez alerto que necessitamos de autores negros e negras que escrevam histórias para atores e atrizes negras, é preciso que isso vire tendência para que não tenhamos estas repetições como em Vale Tudo. E ainda que a novela tenha uma família negra com uma boa participação, com destaque para Belize Pombal estupenda no papel da ótima Consuelo, sendo matriarca de uma família preta, é pouco ainda mais quando a protagonista da novela é apagada desta forma.
De uma forma geral, “Vale Tudo” possui diversos defeitos, elencar todos os plots furados, personagens desperdiçados, acabaria fazendo um livro de no mínimo duzentas páginas. A novela foi um festival de incoerências, esvaziamento não só da representatividade preta, mas desserviços de outras temas importantes como o tema de adoção por pessoas do mesmo sexo, tema da deficiência física (o que foi aquele plot medonho do filho da Odete) e até mesmo de alcoolismo, com uma atuação ok de Paolla Oliveira.
Parece que o texto superficial escrito por Manuela Dias só foi entendido por Debora Bloch e Bella Campos, a primeira até demorou para sair da caricatura para se tornar uma vilã com personalidade, mas a segunda pareceu entender exatamente as fragilidades do texto e embarcou no circo armado fazendo sua Fátima um poço de carisma que carregou boa parte da novela.

Além das duas mencionadas, e mesmo com uma escrita meia boca, outros atores se destacaram como: Malu Galli, Alexandre Nero, Karine Teles e a surpresa Ricardo Teodoro, merecem boas menções. Os demais atores e atrizes do elenco fizeram o que puderam, mas nenhum teve o destaque merecido além dos que foram citados anteriormente neste e nos parágrafos anteriores.
Faltou a este remake mais respeito com o material original, infelizmente ao reduzir o papel da protagonista, “Vale Tudo” criou um problema ainda maior com apagamento de outra protagonista negra mostrando que ainda temos um longo caminho até chegarmos à normalização de pessoas pretas ocupando lugares marcantes na teledramaturgia brasileira.
Ao diminuir a importância de Raquel para trama e reduzir seu papel a uma mera coadjuvante, Manuela Dias acabou por desperdiçar o talento de Taís Araújo que já tinha sido prejudicada na novela de Manoel Carlos, a meia boca novela “Viver a Vida”. Com a história de Taís nas novelas, séries e no cinema, a atriz sabe que seu talento não pode ser desperdiçado desta forma e quem perde é o público que mais uma vez foi privado de uma personagem forte, desta vez por conta de uma autora que foi puro ego e zero humildade para escrever um texto para si e não para o público que queria entregar.

É urgente que a Globo e a TV brasileira aprenda que atores e atrizes pretos podem ter papéis desafiadores seja de mocinhos ou vilões, capazes de atiçar o imaginário da plateia que anseia por boas histórias. O final de “Vale Tudo” exibido ontem dia 17/10, foi a prova que a novela não se sustentou em termos de história na sua última semana e entregou um capítulo final completamente previsível e sem emoção.
Ah, caso você não saiba, a Odete não morreu. Ao se sentir tão emponderada e inovadora de faixada, Manuela Dias reduziu sua versão a mais uma trama genérica de história que não surpreendente em nenhum momento. O apagamento da protagonista negra era o chamariz que esta obra foi um fogo de palha da pior estirpe possível, que responde da forma mais porca possível se vale a pena ser honesto no Brasil com uma reviravolta manjada que ninguém vai se lembrar daqui uma semana.
Em relação ao apagamento do protagonismo preto da novela, fica uma lição prá nós nesta coluna que representatividade negra não é algo para ser usado de forma leviana e já passou da hora de cobrarmos histórias melhores com começo, meio e fim, não só para Taís Araújo (que merece papéis fortes), para toda pessoa preta que deseja ser lembrado no imaginário popular como os atores brancos são, e não apenas como meras figurantes de luxo.
Gostou? Comente sobre o que achou da novela nos comentários. E veja o teaser abaixo.
