Um Olhar Preto – Coluna Especial – “Garota do Momento, o triunfo do folhetim clássico e o risco do apagamento de histórias pretas”

Clássico da Década? Garota do Momento termina sua trajetória com um começo maravilhoso e um final redondinho muito por causa do elenco maravilhoso e da produção caprichada, porém o meio capenga quase coloca tudo a perder.

Foto / Reprodução – Rede Globo

E assim termina o ciclo 2024/2025 de novelas da Globo, marcando história com três protagonistas negras liderando narrativas e fazendo história. Nesta coluna falamos sobre como “Mania de Você” apagou o protagonismo da atriz Gabz (Biônicos) no papel de Viola na reta final da novela aqui, mas também exaltamos a forte representação feminina de Jessica Ellen e sua maravilhosa Madá na ótima “Volta Por Cima” que também teve coluna aqui, porém estava faltando uma novela, que começou com potencial para fazer história dentre estas.

Quando você estiver lendo este texto, a novela da Rede Globo, “Garota do Momento” terá chegado ao fim no último dia 27 de junho, após 202 capítulos exibidos, conseguindo dar um desfecho digno para a história de Beatriz (Duda Santos), uma garota que sonha em encontrar sua mãe desaparecida, Clarice (Carol Castro), além de almejar ser uma grande artista.

A novela escrita Alessandra Poggi (Além da Ilusão), começa em 1942, mas se passa realmente em 1958, contendo todos os aspectos de folhetim clássico se aproveitando de uma época marcada pelo otimismo econômico e político, a popularização do “rock and roll” e o nascimento da Bossa Nova.

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É com esta premissa e este glamour estético que se apoia no talento da direção geral de Jeferson De (M8 – Quando a Morte Socorre a Vida) e a direção artística de Natália Grimberg, que temos uma novela que encantou desde o primeiro capítulo, não só por entender o protagonismo negro de Duda Santos, mas por ter um elenco interracial cheio de talento.

A verdade é que “Garota do Momento” conseguiu trazer a sensação de assistir aquela novela boa, com bons ganchos, capítulos deliciosos que faz o expectador repercutir e vibrar a cada segundo. Digamos que os 100 primeiros capítulos do folhetim foi um dos melhores já escrito nestes últimos anos, com Poggi sabendo fazer licença poéticas pontuais misturando ficção com fatos históricos sem esquecer de entregar aquilo que se espera de uma trama de época se apoiando em temáticas pertinentes como: racismo, luta de classes, machismo, feminismo, feminismo preto, tudo com um toque que faz contraponto entre aquela época e o que acontece atualmente.

O enredo de Beatriz era fortíssimo, ainda mais, quando descobrimos que sua mãe perdeu a memória e teve sua vida apagada por Juliano (Fabio Assunção) e sua mãe Maristela (Lilia Cabral), dois vigaristas que ainda tinham a companhia da misteriosa Zélia (Letícia Colin), que ainda tinha uma falsa Bia (Maisa) que foi criada com um nome falso sem ter ideia como filha de Clarice.

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E a novela não parou por aí, com a chegada de Beatriz ao Rio de Janeiro anos depois da construção desta farsa, somos brindados com um romance clássico do amor à primeira vista com o jovem Beto (Pedro Novaes). Até mesmo um dos maiores problemas atuais, que eram os núcleos paralelos funcionava bem, sem exageros, inclusive privilegiando boas tramas que ainda contavam com outras famílias negras que compunham a história.

Tudo sendo trabalhado de forma harmônica acentuado pela direção inspirada. Uma pena que a novela foi esticada e acabou perdendo parte do brilho na sua segunda metade. Por mais que o público esteja acostumado com história longas, ficou claro que as chamadas “barrigas” foram o ponto fraco do enredo, onde tramas e subtramas bem estruturadas, começaram a ficar repetitivas.

Foi a partir do capítulo 100, um dos maiores momentos de catarse da novela onde Beatriz revela que é filha de Clarice, que a história começou a dar sinais de desgaste. Veja bem, Poggi e seus colaboradores criaram uma história apaixonante, com personagens jovens e adultos que chamavam a atenção do público misturando comédia e romance da melhor forma possível, sem falar nas ótimas referências da época como Copa do Mundo, participações de personagens históricos (Ruth de Souza, Elza Soares, Alaíde Costa e Roberto Marinho) sendo representados por atores e atrizes conhecidos em cena, tudo muito bem equilibrado numa verdadeira homenagem ao período que deu início a era da TV.    

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Porém, “Garota do Momento” acabou entrando numa espiral de más decisões que acabou revertendo toda a positividade creditada pelo público. O fato da Clarice, mesmo com problema de amnésia não se esforçar para descobrir a verdade sobre a filha Beatriz, tomando decisões equivocadas que mais prejudicaram do que ajudaram a protagonista, tornou a personagem pessoa não grata.

Este é apenas um exemplo, do que a novela estava se tornando, não lembrando em nada aquela construção cuidadosa da primeira metade. Núcleos de comédia começaram a sobrepor a trama principal, numa tentativa de trazer leveza para o horário das seis, com utilização do talento cômico de Eduardo Sterblitch no papel do apresentador Alfredo Honório e da atriz Flávia Reis no papel de Jacira, criando um quadro no programa “Alfredo Honório Show” da pata fantoche, que no começo parecia engraçado, mas depois ficou extremamente cansativo, ocupando um espaço desnecessário na história.

Desta forma, a novela passou por um período de pura instabilidade que acabou revelando um problema no texto que até o público passou a notar. Ao focar apenas na comédia e no arco do despertar de Clarice da amnésia como uma virada de chave da narrativa, acabou que a protagonista Beatriz, perdeu bastante espaço e subtramas com personagens negros simplesmente sumiram de vista.

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Veja bem, quando falamos de representatividade, não é só uma fala, é preciso que isto seja normalizado e realmente colocado em prática. No começo de “Garota do Momento” se via um cuidado para moldar a história de Beatriz para não ser só mais uma protagonista preta, a personagem tinha um objetivo, achar a mãe, mas também ser uma artista, não apenas uma professora, a personagem era daquelas mocinhas tradicionais, tinha um grande amor, tinha a disputa com a rival e xará Bia, que funcionava muito bem, fazendo o público abraçar uma disputa que lembrava os velhos folhetins da Globo.

Porém, toda essa construção simplesmente sumiu, com Beatriz inclusive perdendo um espaço enorme na trama, virando coadjuvante da própria história, sofrendo com as armações de Bia, sem que houvesse nenhum tipo de punição para vilã, ou até mesmo para o vilão Juliano, sem falar que Clarice passou a ter um protagonismo que acabou sendo mal visto pela forma como a revelação da recuperação da sua memória foi executada.

Outro fato é que junto com o breve protagonismo perdido de Beatriz, histórias de personagens negros como de Glorinha (Mariana Sena), Ulisses (Ícaro Silva), Marlene (Ana Flávia Cavalcanti), Ana Maria (Rebeca Carvalho), Iolanda (Carla Cristina Cardoso), Carmem Dourado (Solange Couto) e Verinha (Tatiana Tiburcio), simplesmente sumiram de cena, passando semanas sem aparecer, como se as tramas não tivessem importância revelando um vácuo no desenvolvimento desses personagens causando estranheza até mesmo para quem assistia.

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Este incomodo mostrou que é preciso saber escrever para personagens negros sem que estes fiquem sem história durante o desenvolvimento da narrativa, algo que Claudia Couto conseguiu se sair bem em “Volta Por Cima”, mas Poggi ainda precisa refinar mais na sua escrita. É por conta disto, que mais uma vez fica evidente a necessidade de autores e autoras pretos entre os escritores da teledramaturgia da Globo, um passo além neste projeto de representatividade que está acontecendo dentro da emissora.

Este incomodo mostrou que é preciso saber escrever para personagens negros sem que estes fiquem sem história durante o desenvolvimento da narrativa, algo que Claudia Couto conseguiu se sair bem em “Volta Por Cima”, mas Poggi precisa refinar mais na sua escrita. É por conta disto, que mais uma vez fica evidente a necessidade de autores e autoras pretos entre os escritores da teledramaturgia da Globo, um passo além neste projeto de representatividade que está acontecendo dentro da emissora.

Este problema narrativo, ainda refletiu em outras histórias marcantes da trama, como o arco de Guto (Pedro Goifman) e Vinicius (Elvis Vittorio) que eram namorados, mas que tiveram um fim sem muita sutileza, mostrando outro problema latente nas representatividades da teledramaturgia da Globo, a falta de cuidado com tramas LGBTs. Até mesmo o casal hétero queridinho do público Celeste (Débora Ozório) e Edu (Caio Manhente), acabaram prejudicados por se tornarem unidimensionais demais numa trama adolescente com hormônios em polvorosa para justificar o arco da gravidez precoce na adolescência.

Ainda assim, “Garota do Momento” não deixa de ser um sucesso por conta destas ressalvas citadas, muito por conta do que foi construído anteriormente, claramente na reta final, se viu uma correção de rota que mesmo em momentos apressados, foram feitos com cuidados, retomando tramas e aos poucos colocando Beatriz de volta ao seu lugar como protagonista de direito.

A última semana do folhetim teve ótimos momentos, como a morte inesperada de Zélia (Letícia Colin) que ajudou a dar ritmo a reta final e a derrocada do vilão Juliano. O casamento de Glorinha e Ulisses, o nascimento do filho de Iolanda, o nascimento do filho de Celeste, o desenvolvimento da relação de Clarice, Beatriz e Bia/Isabel, a relação maravilhosa entre Lígia e Raimundo, bem como a celebração do casamento de Beatriz e Beto, são momentos maravilhosos que ficaram marcados na memória do público por um bom tempo.

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Em termos de produção, “Garota do Momento” deu um show de cuidado estético e ambientação de época (cenas no salão “Gente Fina”, são maravilhosas), seja no figurino, seja na fotografia, acentuado por uma trilha sonora maravilhosa com clássicos internacionais e nacionais, sem falar na direção geral e artística bastante caprichada, mesmo com várias ressalvas, o texto de Alessandra Poggi merece elogios por conseguir capturar a essência dos folhetins clássicos trazendo boas reviravoltas, personagens marcantes e coerência narrativa na maior parte do tempo.

O elenco em si é talvez o ponto mais forte da novela, com uma gama de atores novatos e veteranos que finalmente ganharam holofotes merecidos. Destaques vão para Carol Castro no papel de Clarice, que mesmo em alguns momentos sofrendo com o texto que lhe foi dado, a atriz conseguiu trazer complexidade e emoção no que talvez seja seu melhor papel na TV até o momento.

Outro destaque vai para Paloma Duarte e Danton Melo, que deram vida a Lígia e Raimundo, aliás, todo o núcleo da família Sobral estava impecável. Letícia Colin no papel de Zélia, Lilia Cabral no papel de Maristela e Fábio Assunção no papel de Juliano, completam os veteranos de destaque. No lado jovem da trama, o grande destaque foi para Pedro Novaes como protagonista Beto, seu melhor personagem até então, que fica ainda melhor por conta da sua química magnética com Duda Santos, um dos casais protagonistas mais encantadores dos últimos tempos.

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Vale menções honrosas para Maisa (talentosíssima), Klara Castanho, Débora Ozório, João Vitor Silva e Pedro Goifman e até mesmo a veterana Bete Mendes que tiveram seus momentos de destaque e não desperdiçaram. Em relação aos atores negros da novela, temos a grata surpresa em termos de atuação para Mariana Sena, a novata Rebeca Carvalho, o bom Ítalo Silva, Caio Cabral, além das veteranas Tatiana Tiburcio (sempre ótima), Solange Couto, Carla Cristina Cardoso, bem como a dupla de vizinhas fofoqueiras mais amada do Brasil, Mariah da Penha e Arlinda Di Baio, que cairam nas graças do povo com o bordão “Cala-Te Boca”.

Contudo, a maior surpresa em termos de atuação foi Cauê Campos no papel de Basílio, o ator que cresceu como promessa mirim, tem o primeiro grande papel da carreira, misturando carisma, malemolência e esperteza em um dos personagens mais versáteis da novela.

Por tudo que foi falado, “Garota do Momento” continua sendo um produto marcante, de longe uma das melhores novelas desta década mesmo com algumas ressalvas. Muito se foi falado nesta Coluna sobre o protagonismo negro em novelas e assistir Duda Santos atuando nesta novela como o maior destaque, principalmente no último capítulo onde a talentosa atriz mostra porque mereceu dar vida a Beatriz, revela que estamos no caminho certo.

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Aliás, falando neste capítulo, tivemos de tudo, vilões sendo punidos (ainda que de forma corrida), linhas de diálogos que ficaram evidentes a tentativa da autora de corrigir seus próprios equívocos, além de final felizes para nossos personagens favoritos, além principalmente da exaltação da cultura e da religiosidade preta numa clara homenagem as religiões de matriz africana ao exaltar Exú, além do lindo monólogo de Beatriz falando sobre nossa negritude misturando passado e presente, além de enfatizar a importância de ser a mudança que queremos no mundo.

A última cena é de uma qualidade imensa e as cenas extras com elenco dançando ao som da música de abertura é ainda mais maravilhoso numa consolidação de um trabalho lindo, que promete ser lembrado por gerações colocando mais uma novela com uma protagonista negra no patamar das mais memoráveis da teledramaturgia brasileira. Para Ruth Souza, Zezé Motta, Léa Garcia, Neusa Borges, dentre outras atrizes negras que abriram caminho para o protagonismo negro de hoje, assim como Jessica Ellen e Gabz recentemente, Duda Santos começa a assinar seu nome no panteão dos grandes atores e atrizes pretos da TV brasileira. O público em estado de graça, só tem a aplaudir.

Gostou? Diga o que achou do último capítulo da novela e da novela como um todo nos comentários.

Observação: Se perdeu o último capítulo, a novela não terá reprise neste sábado por conta do Mundial de Clubes, mas terá reprise segunda feira as 14:40 da tarde. E você pode ver tudo desde o primeiro capítulo no Globoplay.

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