“Cabeça de Nêgo” – Crítica

Instigante, revolucionário e necessário. Este longa nacional mostra um assunto urgente e atual feito para um Brasil que existe e pede socorro, mas que muitos tendem a ignorar.

Fonte: Corte Seco Filmes

Fiz vários textos para o HN e sempre citei que ser negro é uma resistência, principalmente num país como Brasil. Ser estudante no Brasil, também é uma resistência nestes tempos atuais, onde negacionismo toma conta de parte da nossa população sendo que o conhecimento, os fatos e a educação são as únicas saídas para não cairmos nesta alienação que espalha como um veneno na sociedade brasileira que se vê vítima de governo atual retrógrado, conservador e ultrapassado.

Estou dizendo tudo isso para falar do longa nacional “Cabeça de Nêgo” (2020), filme dirigido e escrito por Déo Cardoso que chegou ao Globoplay trazendo uma história que aborda o racismo e a precariedade do sistema educacional brasileiro ao contar a história de Saulo (Lucas Limeira), menino negro que sofre racismo na escola em que estuda, se vendo tomado por ideias inspiradas nos Panteras Negras dos EUA e com isso resolve confrontar o sistema e aqueles que o regem na busca por justiça e mudança.

O filme é bastante simples em sua premissa, mas é complexo em ideias e na forma como usa uma linguagem não convencional para mostrar um problema recorrente no país, como o preconceito racial banalizado e a forma como isso é tratado em escolas públicas que acabam jogando o problema para debaixo do tapete, ao invés de resolver a questão e procurar uma solução para que mais casos não se repitam.

Fonte: Corte Seco Filmes

Confesso que a falta de uma trilha recorrente no longa me incomodou, tudo soa cru demais, sem um tom mais cinematográfico, porém é só isso mesmo que tenho para falar de negativo de “Cabeça de Nêgo”, que consegue trazer tantas referências a figuras negras importantes, além de capturar a aura revolucionária dos grandes líderes pretos dentro de um microverso educacional criado por Cardoso onde a maioria das ideias que envolvam mudança estão ligadas a um jovem negro que vê nos livros, a força para engajar seus colegas de classe a lutarem contra um sistema que não dá sinais de mudança.

O primeiro ato apresenta boas ideias e mostra Saulo como um personagem diferenciado, totalmente imerso as ideias revolucionárias de figuras como Fred Hampton, Nelson Mandela dentre outras figuras importantes da história negra mundial, temos aqui algo que é acentuado de forma positiva pelo roteiro e que ganha vida através de uma direção bastante ousada de Déo Cardoso que usa sua câmera de uma forma inusitada e intimista toda vez que quer capturar os pensamentos de seu protagonista, que sofre com preconceito, internaliza e depois solta em forma de fúria ao se trancar dentro da escola exigindo ações diretas por parte da direção.

A forma crescente como o filme evolui suas ideias abre um leque de possibilidades ao mostrar o quanto estamos vulneráveis educacionalmente e o quão jogado o ensino público brasileiro está e se deteriora a cada dia ao abandonar a formação do jovem ocasionando uma forte evasão escolar e consequentemente uma falta de perspectiva no futuro, levando muitos estudantes a caírem na vida de crime, tendo em contrapartida um governo omisso e que não prioriza a educação.

Fonte: Corte Seco Filmes

Cardoso é bastante direto nas críticas, mas sabe ser sutil quando precisa fazer analogias e pincelar ideias, confesso que o diretor me ganhou mesmo no caótico terceiro ato, mostrando que sua construção na primeira metade do filme foi proposital para mostrar um problema que só fica maior e mais sério a cada dia.

O filme “Cabeça de Nêgo” é um drama que funciona, quando se torna político e social, por mais que alguns diálogos não soem orgânicos em alguns momentos, vejo aqui um diretor que não tem medo de mexer no vespeiro ao mostrar que não basta só protestar, é preciso entender o sistema corrupto e conveniente que faz parte da máquina pública brasileira e a narrativa consegue capturar isso de uma forma bastante inteligente ao mostrar a figura do secretário de políticas públicas tentando se auto promover com a revolução dos alunos na escola.

O interessante aqui é que o roteiro não poupa críticas ao estado brasileiro, mesmo se passando numa escola pública que no final das contas se torna o epicentro dos protestos que abalam a cidade que compõe a narrativa. Produções brasileiras costumam ser boas quando precisam expor fatos, mas as vezes falta uma certa representatividade principalmente porque temos que levar em conta que 56% da população brasileira é negra (compostas por pretos e pardos), mas é pouco vista em tela, mas não aqui, onde o protagonismo negro ganha os holofotes e se torna papel fundamental de uma narrativa instigante que só cresce cada vez que você pensa nos detalhes evidenciados pelo diretor.

Fonte: Corte Seco Filmes

A produção do filme é modesta, apesar de bem filmado, se vê uma fotografia simples, mas cheia de personalidade, além de um roteiro bem desenvolvido, apesar de que em alguns momentos no começo, algumas ações de personagens pareçam abrupta demais. A trilha sonora citei como ponto baixo, pois dava para ser melhor, assim como captação de som ambiente, mas o filme compensa isso com uma direção excelente e muito bem dosada, com uma edição esperta principalmente na sequência final onde o longa usa imagens verídicas no maior estilo “Infiltrado da Klan” do diretor Spike Lee.

Em relação ao elenco, eu achei apenas ok, o jovem Lucas Limeira as vezes se mostra um tom acima, mas seu personagem tem carisma o suficiente para um protagonista cheio de fúria e com vontade de mudar o mundo a partir da sua escola. O reforço de Jessica Ellen (novela Amor de Mãe) e Val Pierre (novela Além do Tempo) no elenco coadjuvante é bacana para ajudar o elenco composto em sua maioria por jovens atores a conseguir segurar suas respectivas cenas.

No geral “Cabeça de Nêgo” é um filme muito bom, um exemplar nacional que expõe um problema sério da educação brasileira, além de mostrar que o racismo continua sendo um tema atual e infelizmente recorrente. Com uma direção afiada, uma narrativa explosiva e um elenco comprometido, este longa brasileiro surpreende revelando o momento sombrio e atual que vivemos, além de mostrar que a revolução, a mudança e a luta começam através do conhecimento, no caso de Saulo, o conhecimento do povo negro é o que lhe alimenta e é o que vai nos alimentar depois que assistirmos a esta obra, que mostra que o espirito revolucionário existe dentro de nós, só precisamos despertá-lo.

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