Um documentário que preenche as lacunas e tenta explorar uma união que se tornou uma amizade forte de dois dos maiores ícones negros da história.

A mudança vem de uma maneira ou de outra, a sociedade tem preconceitos aos montes e isso infelizmente não é novidade, mas ao longo de décadas movimentos negros aqui e nos EUA tiveram sua parcela que ajudaram a moldar e a garantir nosso direito de ir e vir. Nos EUA isso ficou ainda mais evidente por conta do pesado sistema de segregação que separavam negros e brancos, não foi à toa que lideranças negras foram importantes para garantir pressionar o governo da época a acatarem suas reivindicações, uma delas era Malcolm X, a outra era Cassius Clay, mais tarde conhecido como Muhammad Ali, duas figuras emblemáticas, polêmicas que serviram como percussores dos movimentos negros na década de 60.
O documentário “Irmãos de Sangue: Muhammad Ali e Malcolm X” (“Blood Brothers: Malcolm & Muhammad Ali”, 2021) que estreou na Netflix no último dia 10 de setembro, traz exatamente um pouco da história Malcolm X e Muhammad Ali focando na sua ascensão, período de amizade, até sua turbulenta separação por ideias divergentes em 1964. Esta obra dirigida por Marcus A. Clarke (Unsolved Misteries) é baseada no livro de mesmo nome de Randy Roberts e Johnny Smith, baseando-se em vários relatos dos familiares e amigos mais próximos de Ali e Malcolm, o que dá mais autenticidade ao que está sendo contado.
A narrativa se passa entre 1962-1965 e conseguimos embarcar de imediato quando Clarke nos dá uma breve introdução sobre a figura de Malcolm X e Cassius Clay, o primeiro um jovem nascido no Nebraska que logo se tornou uma das figuras mais importantes e influentes do movimento negro dos EUA, enquanto o segundo um jovem nascido em Louisville, Kentucky, com talento para ser pugilista que o levou a se tornar um dos maiores boxeadores da história do esporte e um fenômeno global.

A trajetória desses duas figuras históricas já daria um documentário de mais três horas de duração de cada um, porém este consegue resumir bem o que quer contar criando paralelos entre Ali e Malcolm e a influência que os dois tiveram sobre a comunidade negra norte americana pré direitos civis. Em um EUA ainda cercado de preconceitos, racismo e uma divisão pesada entre negros e brancos, a liderança de Malcolm X e a atitude petulante e ousada de Ali serviram de inspiração para uma geração de pessoas pretas que viam nessas figuras um caminho para uma sociedade igualitária e com mais direitos.
Talvez o maior trunfo de “Irmãos de Sangue” seja pelo fato de a narrativa conseguir pegar exatamente a síntese do ponto central da amizade de Ali e Malcolm que começou pelo elo religioso que acabaram compartilhando. A religião do islã é o cerne dessa amizade que nos ajuda a entender o fervor de Malcolm X como ativista e mais tarde a devoção de Muhammad Ali pela crença que adota este nome exatamente pelo seu comprometimento com a causa. Elijah Muhammad, líder da igreja islâmica e um nome forte dentro da religião muçulmana foi o grande mentor de X e posteriormente de Ali, assim também como foi o principal responsável pela briga que levou o rompimento de amizade entre eles.
A forma como a direção e o roteiro conseguem contar uma história e ao mesmo tempo enriquecê-la trazendo diversas imagens históricas que incluem depoimentos reais, fotos antigas, reportagens dá época, tudo que ajude a dar ainda mais veracidade ao que está sendo retratado só deixa o filme ainda melhor, conseguindo nos transportar para uma época difícil, onde ter voz e ser uma voz era um privilégio para poucos, principalmente se você fosse negro, mas o lado político de Malcolm X e o lado esportistas de Ali, conseguiu inseri-los num contexto que arrancavam admiração e medo principalmente das autoridades brancas da época.

Uma coisa que tem-se deixar claro aqui, é que “Irmãos de Sangue” é apenas um escopo e uma parte da história desses dois ídolos, ainda assim é um documentário tão bem acabado e tão bem produzido, além de culturalmente rico pela pesquisa realizada para tentar da forma mais sucinta possível mostrar para o expectador como o laço de irmandade construído entre Malcolm e Cassius Clay fazia não só bem para ambos, mas também ajudava a causar uma repercussão positiva nos tabloides da época fortalecendo a luta pelo movimento negro, além de deixá-los ainda mais famosos fruto da personalidade de duas pessoas inteligentes e carismáticas.
O mais interessante para quem gosta desse gênero, a narrativa é um prato cheio preenchido numa estrutura que chega nos 96 minutos de duração conseguindo mostrar de uma forma até equilibrada Malcolm X como um ícone negro de uma geração, ao mesmo tempo uma pessoa amiga e de personalidade forte, com convicções e um carisma que acabou por despertar certa rivalidade com o seu mentor Elijah Muhammad. O documentário consegue dar uma pincelada na sua vida pessoal, tendo sua filha e amigos confirmando histórias e contando outras curiosidades sobre esse cara religioso, mas que jamais deixou de lutar constantemente pelos direitos e liberdade do povo negro num país ainda bastante racista.
Por outro lado, um jovem pugilista cheio de vigor físico e uma habilidade única de sempre conseguir derrubar um oponente não importava o rival que tivesse. Cassius Clay viu na sua amizade com Malcolm X algo forte que chega a ser definido realmente como uma relação de irmãos mesmo, que fica ainda mais intensificada quando encontram no islamismo um denominador comum. O interessante aqui é que o documentário aproveita para mostrar o crescimento expressivo de muçulmanos negros praticantes da religião nos EUA no começo da década de 60.

É possível ver um certo radicalismo no ar, mas que nunca é aprofundado pelo documentário, apesar de uma certa tensão no ar, isso tudo para mostrar como a religião em questão serviu para unir esses dois indivíduos tão diferentes, ao mesmo tempo que levou a separa-los devido a conflitos que aumentaram fazendo esse laço de amizade ruir e se transformar em rancor e remorso de ambas as partes. Muito do que foi mostrado em “Irmãos de Sangue” também foi mostrado no filme dirigido por Regina King baseado na peça fictícia “Uma Noite Em Miami”, desta vez conseguimos separar bem o que foi real naquele fatídico dia em que Ali, Malcolm e outros famosos faziam num hotel em Miami.
No geral o documentário produzido por Kenya Barris (Black-ish) é um achado, não só pelos diversos depoimentos, fotos e vídeos com cenas inéditas exibidas, mas por mostrar de uma forma mais íntima duas pessoas de personalidade diferentes que na intimidade compartilhavam momentos juntos demonstrando um forte laço de amizade que ajudou a amadurece-los em suas respectivas jornadas. Aqui temos um lado político, um lado religioso e um lado pessoal, mas com certeza temos um ponto em comum, dois homens negros que usavam de seus privilégios para lutar e destruir o racismo institucionalizado nos EUA cada um a seu modo, a ousadia, altivez e influência de Malcolm X, fez dele um ícone que inspirou e inspira gerações até hoje, por outro lado Muhammad Ali mostrou que os negros poderiam chegar no topo e atingir seu potencial, ambos deixaram sua marca e apesar dos conflitos, a trama criada mostra que essa amizade merecia o fim melhor do que teve, ao menos o vínculo criado entre os dois ainda permaneceu, mesmo que tenham seguido por caminhos diferentes.
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