Transcendendo ancestralidade e negritude, o documentário de Emicida traz não só apenas uma aula de história, mas uma jornada imersa na história da cultura negra através da música.

Nada mais satisfatório do que fazer poesia através da música, aqui no Brasil conhecemos muito disso, pois os cantores mais antigos regados de muito samba, bolsa nova, jovem guarda sempre trouxeram canções marcantes, cheias de cultura, crítica e principalmente, história. A música negra, em especial tem uma longa trajetória no Brasil, mas nem sempre ganha os holofotes merecidos porque realmente falta uma valorização dos cantores negros no Brasil como um todo.
Como uma forma de resgate propriamente dito, Emicida, um dos rappers mais conhecidos do Brasil, consegue trazer através de seu projeto musical “AmarElo” uma nova forma de enxergar as raízes da música negra no Brasil. O cantor e compositor lançou seu novo álbum e com ele, surgiu o documentário em parceria com a Netflix, “Emicida: AmarElo – É Tudo Prá Ontem”, que não só resgata a origem do que seria futuramente rap e hip hop brasileiro, mas também consegue traçar um paralelo que vai direto até as raízes do samba carioca.
O documentário lançado no final do ano passado foi uma das gratas surpresas do audiovisual nacional, não só pelo apuro técnico, mas pelo a forma como a narrativa se desenvolve intercalando o show acústico no teatro Municipal do álbum “AmarElo” para uma plateia diversa e em sua maioria advinda da periferia, enquanto somos levados a uma viagem bastante imersiva pela história do rap nacional começando lá atrás no período em antecedeu o surgimento do samba no país, tudo isso narrado de forma bastante autêntica pelo próprio Emicida.

A narrativa é dividida em três atos, no primeiro “Plantar”, o rapper brasileiro resgata suas próprias raízes ancestrais na busca de suas fontes de inspiração, o documentário é bastante rico neste ponto, resgatando nomes da música negra que aqui ganham nome e um legado que teve seu início entre os anos 30 e 40 em São Paulo e no Rio de Janeiro também, a medida que vamos assistindo, mais nomes vão surgindo, alguns soam como novidade, outros mais conhecidos como Leci Brandão, apenas mostram o quão rico é a cultura preta brasileira e o legado dela para com cenário musical nacional.
Neste primeiro ato notasse um cuidado em entregar informações uteis para quem assiste, não esquecendo os percalços enfrentados por sambistas para encontrar sua voz e fazer sucesso num cenário majoritariamente branco. Emicida vê no passado, uma forma de se inspirar para criar seu próprio futuro, é neste ponto que o roteiro mostra o rapper abraçando o legado musical para construir novos acordes para seu álbum no presente.
O documentário dirigido Fred Ouro Preto é cheio de ideias, mas bastante focado em deixar uma boa impressão, com o tempo vamos conhecendo sobre a história da cultura negra brasileira, ao mesmo tempo que potencializa as músicas do Emicida no presente com canções maravilhosas, com uma percussão única, mostrando que o cantor é detalhista e metódico, buscando nas suas próprias raízes uma forma de inovar, renovar seu próprio repertório musical, tudo isso filmado de forma primorosa por Ouro Preto.

O segundo ato da narrativa, “Regar” é tudo que a narrativa construiu no seu primeiro ato tomando vida através das músicas em apresentações maravilhosas que misturam diferentes gêneros tendo como cerne o rap e hip hop mostrando a versatilidade de um cantor que ainda traz a aura do samba em suas canções tornando tudo familiar para quem houve. É lindo a forma e o comprometimento do projeto “AmarElo” em trazer algo novo, mas sem esquecer tudo aquilo que o torna especial, a valorização de pessoas pretas num país que ainda assolado por racismo e que reluta em dar espaço para elas acontecerem e brilharem.
A produção do documentário é bastante caprichada, se por um lado usa uma linguagem mais didática misturado com arte em desenhos inspirados enquanto vai tecendo de forma importante da cultura negra na construção do caldeirão da diversidade brasileira dando nome a seus percussores, a linha narrativa vai apenas enriquecendo a medida que o expectador embarca nesta jornada musical única num filme que não para de surpreender não só com relatos, mas com participações maravilhosas de artistas e cantores importantes do cenário nacional nos bastidores da produção do álbum, todos servindo de inspiração para Emicida, de Fernanda Montenegro, passando por Gilberto Gil, Zeca Pagodinho, Majur e chegando em Pabllo Vittar.
Inclusive a direção de Ouro Preto se faz bastante precisa em capturar momentos, bem como acentuá-los para humanizar seu protagonista, que mostra uma humildade e um talento para criar músicas marcantes mostrando que é um dos jovens talentos negros mais completos desta geração de rappers nacionais. Não há dúvidas que Emicida se mostra não só comprometido com as próprias músicas, mas também com a mensagem que elas passam, soando atuais e críticas revelando ainda mais seu lado ativista e se mostrando também um compositor inspirado.

Inclusive a direção de Ouro Preto se faz bastante precisa em capturar momentos, bem como O longa cresce ainda mais no terceiro denominado “Colher”, onde as ideias semeadas durante toda a narrativa, ganham contornos em formas de letras que viram pura poesia nas maravilhosas performances musicais no Teatro Municipal, onde Emicida escolheu como palco para celebrar a verdadeira diversidade brasileira em um show que arranca reações genuínas da plateia capturadas com precisão por câmeras que sempre buscam rostos humildes, rostos negros, rostos periféricos, mostrando que todo aquele espetáculo musical tinha um objetivo a cumprir e fazer chegar cultura naquelas pessoas em que todo o projeto se inspirou.
De uma forma geral, “Emicida: AmarElo – É Tudo Prá Ontem” é um espetáculo visual e sonoro, com uma fotografia impactante e cheia de cores, uma direção precisa, um roteiro bem desenvolvido e principalmente, um protagonista que se inspira no passado e inspira outras pessoas no presente cantando e se fazendo ouvir trazendo uma linguagem urgente, necessária e relevante. Emicida produz uma obra única, que traça um elo entre épocas, aproximadamente 100 anos de uma jornada exaltando a história negra seja através da arte, da religião ou através da música de uma forma que poucas vezes se viu aqui no Brasil, é impossível não se contagiar com o documentário e é impossível não se encher de felicidade ao assistir uma obra tão completa, antológica e provavelmente atemporal que merece ser assistida e revisitada de tempos em tempos.
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Obs: O documentário “AmarElo” foi tão bem recebido pelo público e a crítica, que a Netflix irá lançar na íntegra o show do álbum no mês que vem. Veja o trailer abaixo.
