Entre altos e baixos, a série italiana da Netflix faz história ao retratar pela primeira vez a narrativa de um super-herói negro que defende sua comunidade de problemas cotidianos.

Por diversas vezes citei que uma das qualidades da Netflix é ter um catálogo globalizado que nos permite ter acessos as várias produções distintas de vários países ao redor do mundo. A empresa vem neste investimento pesado faz mais de três anos aumentando a quantidade de produções fora dos EUA a cada novo ciclo, desta forma essa gigante dos streamings dá várias oportunidades para autores de outros nacionalidades criarem e produzirem seu conteúdo original.
Digo tudo isso, por conta da nova série que estreou recente no catálogo dela e que chama atenção por ser o primeiro seriado focado na cultura negra italiana explorando um lado poucas vezes visto em filmes e séries do país. O seriado “Zero”(2021), uma produção de oito episódios que mistura a temática de super-herói com drama e aventura de maneira tão envolvente que é capaz de prender o expectador do início ao até o fim devido a suas boas reviravoltas e bons ganchos.
A série criada pelo roteirista de quadrinhos Roberto Marchionni conhecido como Menotti (Meu Nome é Jeeg Robot) conta a história de Omar(Giuseppe Dave Seke), um jovem descendente de imigrantes senegaleses que vive na comunidade de Barrio, um bairro da periferia de Milão que abriga várias famílias de imigrantes de origem africana. A vida de Zero, como é conhecido popularmente pelos amigos, vira de ponta a cabeça quando descobre que tem a habilidade de ficar invisível e decide ajudar sua comunidade que está sendo ameaçada por uma grande empresa de imóveis que quer tomar toda a vizinhança.
A narrativa não tem nada de muito novo, a verdade é que a série se apoia em alguns clichês para desenvolver seu enredo, mas possui a vantagem de que Menotti consegue dar uma personalidade própria ao seu seriado de super-herói. O piloto apesar de um pouco acelerado consegue mostrar bem seu protagonista numa narrativa que foca neste jovem fã de mangas japoneses que vive com a irmã Awa (Virginia Diop) e o pai, e que tem sonhos de ser um grande cartunista e se mudar para Bélgica onde poderá realizar seu sonho.

O roteiro escrito por Menotti e coescrito pelo rapper Antonio Dikele Stefano (a história inclusive se baseia em um de seus livros), tenta a todo momento balancear o drama vivido por Zero em sua comunidade, com os aspectos fantásticos da descoberta de seus poderes, bem como sua vida amorosa com a bela e jovem Anna (Beatrice Grannò), como fica claro no segundo episódio do seriado, porém nem sempre o enredo consegue esse equilíbrio, mas inicialmente é o que captura a atenção de seu público.
Desde o começo a série deixa claro os poderes de Omar, mas a narrativa prefere ir mostrando suas habilidades aos poucos e sempre integrada ao plot que a série está desenvolvendo naquele momento. No primeiro episódio cria-se um mistério, o segundo episódio ele testa a habilidade de novo e no terceiro seus amigos começam a ter noção de seu dom especial.
A verdade é que assistindo ao seriado, você não sente que a série é sobre um super-herói, mas apenas de uma pessoa comum que por acaso se descobriu especial. Até pensei que a narrativa usaria metalinguagem, afinal Omar cria e desenha a história sobre seu alter ego em forma de quadrinhos utilizando sua vivência no próprio bairro para fazer as aventuras que escreve, mas isso não é muito explorado a não ser para mostrar os sonhos do protagonista.
Talvez a característica mais interessante da série seja a forma como explora a cultura em Barrio e seus problemas diários, uma comunidade que assim como muitas de periferia sofre com a pobreza e descaso do poder público, mas que encontra em seus moradores que se ajudam como uma forma de sobrevivência mesmo sofrendo xenofobia e preconceito em determinadas ocasiões, e somando a tudo isso, o local ainda sofre pressão de grandes empresas para destruir tudo que foi construído ali ao longo dos anos. Essa forma de gentrificação é representada por uma ambiciosa empresa imobiliária que usa de todos os métodos para dificultar a vida dos moradores da região, inclusive utilizando traficantes locais para fazer o serviço sujo.

A série cresce muito nos episódios quatro, cinco e seis no miolo da temporada, mas ao mesmo tempo que isso acontece, aumentam os problemas também. O mais difícil de que vejo nesta narrativa é que em alguns momentos não se vê uma preocupação do roteiro em fechar lacunas ou arcos menores, isso acaba soando estranho em determinados momentos, sem falar que em mais perto do final da temporada em partes decisivas atrapalha o desenvolvimento da história que acaba soando apressada demais.
Olhando por outro lado, a narrativa ainda tem seu aspecto agradável que torna a experiência muito boa, como os sonhos de Omar em ser quadrinista, sua amizade com o quarteto, Sharif (Haroun Fall), Momo (Dylan Magon), Inno (Madior Fall) e a esperta Sara (Daniela Scattolin) construída no meio de conflitos e laços, é uma das crescentes positivas da temporada e talvez um de seus pontos mais fortes. Outro destaque é o relacionamento de Omar e Anna, que apesar de cair no velho clichê do menino negro pobre e da menina rica privilegiada, ainda tem toques mais atuais e maduros que valem a pena o investimento do expectador.
O lado super-herói da série tenta ser o menos grandioso possível e usar os poderes de Omar de uma forma mais corriqueira e cotidiana, com ele tentando ajudar os amigos a faturar um dinheiro num jogo de pôquer, ou pegar provas contra um bandido local para tentar resolver os problemas do bairro. O legal dos efeitos da invisibilidade, é que vemos como o garoto fica invisível, como ele enxerga tudo a sua volta e como o público o visualiza neste estado, no decorrer dos episódios descobrimos que ele tem outras habilidades, além de algumas consequências efeitos colaterais do uso excessivo de seus poderes.

A reta final da série cai um pouco na qualidade, achei que algumas resoluções acontecem sem que você menos espere e as vezes acontece fora da tela, o que causa uma sensação de frustração. Ainda assim a reta final é marcada pela sobreposição do mistério dos poderes de Omar, que parece ter ligação com uma pessoa próxima dele e com a história da sua família, porém Menotti e seus roteiristas preferem deixar seu público na expectativa ao sugerir alguns ganchos interessantes no episódio sete e no oito, que fecha a temporada.
De uma forma geral, “Zero” vale o tempo investido, apesar de ter um aspecto mais modesta, a série sabe trabalhar bem seu protagonista e consegue dar características positivas a obra ao focar numa trilha sonora pop e envolvente (inglês, espanhol, italiano e francês são algumas das letras das músicas), efeitos visuais decentes e uma história que te pega pelo valor da amizade, a valorização da comunidade, a ascensão de (super) herói local e também pelo foco em pessoas negras italianas que poucas vezes ganham espaço para serem retratadas, mas aqui elas são o centro da história e brilham com atuações razoavelmente boas mostrando a força de seus personagens (Omar, Sharif e Sara são os destaques) em uma narrativa que não tem grandes pretensões, funcionando como um bom passatempo e que se encerra com gostinho de quero mais com um desfecho cheio de potencial.
Gostou? Assista ao trailer. Se já assistiu ao seriado, conte abaixo o que achou.
