“Dois Estranhos” – Análise

Utilizando como base o “looping temporal” de reviver o mesmo dia, este curta traz reflexão e uma mensagem bem importante sobre um problema sistêmico que se repete e continua matando pessoas negras sem motivos aparentes.

Uma Indicação ao Oscar 2021
Vencedor do Oscar
Melhor Filme Curta Metragem
Fonte: Netflix

Não é de hoje que  a comunidade negra ao redor do mundo se une para reivindicar melhores condições, respeito, igualdade e mais diversidade em prol de uma sociedade melhor, porém as lutas nos últimos anos têm se intensificado tanto no Brasil quanto nos EUA. O movimento “Vidas Negras Importam” se tornou um símbolo de resistência principalmente após as mortes inexplicáveis de Breonna Taylor e George Floyd em 2020, mortos sem motivos aparentes por policiais brancos em situações que poderiam ter sido resolvidas de outra forma. Aqui no Brasil tivemos o recente caso do João Alberto, morto de forma covarde por um segurança de uma grande rede de supermercado.

A única forma de podermos evitar que essas situações aconteçam, é agirmos de forma unida numa luta antirracista que mude o sistema de dentro, outra forma é não esquecermos do nome dessas vítimas, que tinham família, um futuro promissor e acabaram mortas de uma forma cruel. É dessa forma que o curta metragem “Dois Estranhos” (Two Distant Strangers, 2021) escolhe mandar sua mensagem, utilizando uma premissa aparentemente simples, mas com muita coisa a dizer sobre a valorização das vidas pretas.

O curta dirigido por Travon Free (Black Monday) e Martin Desmond Roe (Wiz Khalifa: Behind The Cam) conta a história do cartunista Carter James (Joey Bada$$) que se vê preso em um “looping temporal” revivendo o mesmo dia na tentativa de chegar em casa para ver seu cachorro. Como eu disse a premissa é aparentemente simples, mas aqui tudo é percebido nos detalhes, Carter está na casa de Terri (Zaria), a garota com quem ele passa a noite, tudo estava indo muito bem, até esbarrar num desconhecido na rua e chamar a atenção do policial de patrulha Merk (Andrew Howard) que o rende de forma truculenta até que ele acaba morrendo na abordagem.

Fonte: Netflix

A narrativa aqui começa com uma aparente atmosfera otimista e acaba virando a chave para um clima de terror. Tudo isso seria tratado de forma normalizada em qualquer outra situação, mas Carter é negro e o policial Merk é branco, claramente vemos aqui uma situação de racismo explicito que não traz motivo que justifiquem a ação a intervenção truculenta e fora de controle. A forma como o roteiro escrito por Travon Free aborda a situação é interessantíssima e nos faz pensar a todo momento que aquilo não faz sentindo, como muitas vezes as situações que acontecem na realidade também não fazem.

Fica claro que “Dois Estranhos” toca na ferida, mas de uma forma bastante esperta. Não sabemos por que Carter revive o dia, ou porque é morto sempre que tenta chegar a salvo em casa. Como muitos filmes do gênero como “Feitiço do Tempo”, “No Limite do Amanhã” e na recente série “Boneca Russa”, somos levados a acreditar que o personagem precisa entender o que está acontecendo e lidar com a situação de uma forma diferente e mais branda num tipo lição que o protagonista precisa aprender para quebrar o “looping”.

O curta é inteligente exatamente por usar essa premissa de “looping temporal” de uma forma complementar o que está contando, Carter tenta de todas as formas escapar de seu destino cruel, mas sempre acaba cometendo algum erro, só que não existe um erro aqui, isto está fora do controle dele. E fica claro a perseguição é contínua numa clara alusão a perseguição de pessoas pretas que vivem suas vidas comuns, mas acabam morrendo porque o racismo impregnado na sociedade acha que elas são potencialmente “perigosas”.

Fonte: Netflix

A narrativa tem trinta e dois minutos de duração, mas é suficiente para nos situarmos rapidamente naquele universo e para entendermos que o problema é muito maior do que simplesmente tentar um diálogo honesto entre a vítima e seu opressor, como fica claro na reta final da história. É triste você se sentir vulnerável tentando viver sua vida e a sensação de que você, como pessoa preta não tem a liberdade de viver uma vida normal sem que outras pessoas de acusem de algo que você não fez.

O elenco aqui é bom, as atuações são razoavelmente boas e o enredo consegue trazer boas reflexões, ainda que o desfecho traga uma esperança melancólica e um alerta importante, percebemos que o problema é muito maior e que o ativismo e as lutas feitas pelas organizações como “Vidas Negras Importam” são cruciais para que injustiças não sejam esquecidas e que os verdadeiros culpados sejam punidos e levados a pagarem pelos crimes que cometeram.

De uma forma geral, “Dois Estranhos” é um grande curta-metragem, simples em sua superfície, mas complexo nas entrelinhas e chocante quando entendemos o contexto, as referências e as nuances na direção efetiva de Travon Free e Martin Desmond Roe que trazem mais do que apenas a história de um personagem negro, mas a forma como o mundo julga e condena antes mesmo de entender a situação. Aqui compreendemos que mesmo sem culpa, pessoas negras são condenadas apenas por existirem, numa sociedade que por mais que esteja mudando, ainda se pauta por preconceitos e ódio inexplicáveis, é por isso que é preciso lembrar dos nomes das vítimas desses crimes bárbaros, porque são pessoas, porque são gente como a gente, que foram privadas de viver, elas que aqui são representadas pelo personagem Carter, um jovem negro cheio de sonhos, com vontade viver um romance, com vontade de viver sua vida, ou simplesmente com o desejo de voltar para casa e cuidar do seu cão, e isso é um direito de todos, sejam eles negros, amarelos ou brancos.

Gostou? Veja o trailer, mas se já assistiu comenta o que achou do curta.

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